It's a heartache
Nothing but a heartache
Era 1982, meus pais resolveram abrir um bar para driblar o desemprego e a crise econômica que devastavam as periferias da Grande São Paulo. Em pouco tempo, muitas pessoas desconhecidas começaram a fazer parte do nosso cotidiano. Um deles era o carteiro da nossa região. Era um homem preto, magro, de baixa estatura. E muitos outras pessoas, homens e mulheres, frequentavam o bar, que recebeu o nome de “Bar do Sossego”, porque não tinha bilhar, jogo de baralho e outros atrativos que os demais bares tinham e que causavam brigas, discussões e até mortes! Eu gostava de ficar perto da mãe, no balcão, ouvindo a voz rouca de Bonnie Tyler que se esvaía do rádio:
Hits you when it's too late Hits you when you're down
Dois anos se passaram e eu já estava prestes a terminar o primerio grau. Era hora de ir trabalhar. Quem nascia na periferia de Poá, já nascia predestinado a ser operário da indústria ou da construção civil. Com muita sorte, conseguia emprego no comércio. Porém, os meus pais achavam que eu era inadequado para ser operário. Eles queriam que eu tivesse outras oportunidades na vida. Meu pai sempre dizia:
Você tem que estudar! Você não aguenta boca quente!!
Ele entendia de “boca quente”, porque o último emprego dele havia sido em uma indústria de artigos refratários, onde proliferavam inúmeros fornos ardentes e fumegantes, como aquele onde foram jogados Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, na Babilônia. E o meu pai não me queria à beira dos fornos de Nabucodonosor.
Minha mãe queria que eu trabalhasse em um banco. Ela me colocou em um curso de datilografia. Eu e os outros meninos aprendíamos a datilografar com as mãos enfiadas dentro de uma caixa de madeira que cobria todo o teclado. Primeiro, tínhamos poucos dias para decorar onde ficavam os caracteres do teclado. Depois, a caixa era colocada e a gente já tinha que saber onde ficava cada letra, número e acento. Eu aprendi e estava com esperança de conseguir um emprego em um escritório ou no banco. A mãe era cliente de um banco que ficava perto da Praça da Bíblia. Sempre que ia lá, ela procurava saber se estavam precisando de um office boy. No entanto, havia centenas de meninos procurando trabalho e poucas vagas.
It's a fool's game
Nothing but a fool's game
Foi assim que a mãe perguntou para o carteiro se ele sabia de algum lugar que estava contratando meninos da minha idade. Ele disse para a mãe que conhecia um funcionário da prefeitura que arranjava emprego para meninos. Era um homem de bom coração e que gostava de ajudar as famílias da periferia, disse ele. A mãe ficou contente! Quem sabe eu não conseguiria o tão sonhado emprego de office boy! Ainda mais na Prefeitura de Poá, sem precisar embarcar nos trens superlotados que levavam e traziam a sua carga humana todo santo dia.
Na outra semana, o carteiro conversou com a mãe: estava tudo acertado. O funcionário da prefeitura me receberia com hora marcada e tudo. Era só chegar e me dirigir ao gabinete do prefeito e procurar pelo Sr X.
Standing in the cold rain Feeling like a clown
Chegou o dia. A mãe deu o dinheiro para eu ir e voltar de ônibus, mas preferi ir a pé, para economizar a passagem e comprar salgadinho na loja dos japoneses, em frente à Igreja de Nossa Senhora de Lourdes, a matriz católica de Poá. Antes de eu sair, a mãe conferiu se eu estava bem vestido, se a roupa estava bem passada, se o cabelo estava penteado. Enfim, tinha que causar boa impressão!
Fui, apreensivo! Era a primeira vez que eu iria entrar sozinho na prefeitura. Já tinha ido lá outras vezes, mas sempre com a mãe ou com o pai. E lá estava eu, com quase 15 anos e entrando sozinho na prefeitura de Poá em busca do meu primeiro emprego.
It's a heartache
Nothing but a heartache
Fiz do jeitinho que o carteiro recomendou. Cheguei, perguntei onde ficava o gabinete do prefeito. Disse que estava procurando o Sr X e alguém me levou até lá. Fiquei olhando para todos os lados para ver se via o prefeito, pois ele só visitava o Jardim Emília antes das eleições, depois não voltava mais. Por isso, eu queria tanto vê-lo... Portas eram abertas e portas eram fechadas. Pessoas entravam e saíam, mas o prefeito não estava lá.
De repente, surgiu um homem. Não um homem qualquer. O homem mais bonito e impecavelmente vestido que eu já tinha visto no Alto Tietê. Ele se apresentou. Era o Sr X. Eu pensava que o Sr X fosse algum velhinho baixinho, careca, barrigudo e bonachão. Mas não, ele era alto e muito forte, e se parecia com o ator Christopher Reeve, só que mais velho, de cabelos grisalhos. Tive vontade de perguntar se ele era parente do Super-Man, mas eu não estava ali para fazer perguntas bobas, e sim para conseguir um emprego. E estava preparado para falar que eu estava terminando a 8ª série na EEPG Professor Elias Zugaib, que sabia datilografar e o que mais me fosse perguntado.
Love him till your arms break Then he'll let you down
Todavia, ele não me perguntou nada ali. Pediu que eu o acompanhasse. Eu fui atrás dele. Ia olhando pelas portas que se abriam para ver se via o prefeito, mas nada! Fui seguindo o Sr X. Secretárias cruzavam os corredores levando pastas e mais pastas. Pelo jeito que as pessoas cumprimentavam o meu anfitrião, ele era alguém muito conhecido, querido e importante ali no gabinete. E fomos nos afastando daquele burburinho, percorrendo um corredor no qual havia pouco barulho, pouca gente, pouco movimento.
Chegamos a uma sala enorme, linda, maravilhosa! Móveis lustrosos, antigos e imponentes! Delicadas estatuetas, cortinas diáfanas, quadros que encantavam os olhos! Fiquei paralisado diante de tantas coisas bonitas em um lugar só! E o Sr X começou a me mostrar e explicar o que eram aquelas obras de arte! Ele era muito atencioso e calmo. A voz dele tinha um tranquilizante que fazia o tempo passar bem devagarinho, em câmera lenta... Quanto tempo fiquei ali ouvindo as explicações? Não sei...
It ain't right with love to share
When you find he doesn't care for you
Apesar de achar aquilo tudo lindo, eu estava ansioso para saber qual era a oferta de emprego que ele tinha conseguido para mim, porque o carteiro disse que eu iria sair de lá com um emprego. O Sr X já havia arranjado emprego para muitos meninos, fazia isso de bom coração, porque gostava de ajudar, dizia o homem que entregava as cartas no bairro.
Entretanto, o Sr X não tocava no assunto do emprego, mas estava atento à porta que havia ficado semiaberta. Ele se esforçava para ser gentil, atencioso e ficar bem próximo de mim enquanto me dava explicações. De tão gentil, por vezes, o rosto dele ficava muito próximo ao meu para detalhar algo que eu parecia não entender. A porta, ele não esquecia... Olhava de soslaio... Estava atento à porta. Será que ele queria fechá-la?
It ain't wise to need someone As much as I depended on you
Conforme os minutos iam passando, fui ficando cansado daquilo, mas não queria parecer ingrato com aquele homem tão educado, tão carinhoso comigo como se já me conhecesse há muito tempo, como se fôssemos íntimos. Eu só queria saber do emprego: que ele me desse o endereço, o telefone da empresa e que eu pudesse ir para casa!
No entanto, aquela sala estava equipada com atrações que encantavam meninos como eu. O Sr X era exímio anfitrião e sabia como retardar a minha partida o máximo possível. Ele foi colocando em cima da mesa luxuosos álbuns com coleções de selos e cartões-postais, que eram a minha paixão!! Quadros com deslumbrantes borboletas empalhadas!! Como eu poderia sair dali sem admirar demorada e detalhadamente cada selo, cartão-postal e borboleta que estavam ali, dispostos em frente à minha curiosidade?
It's a heartache
Nothing but a heartache
O tempo ia passando, e eu perdido entre selos, cartões-postais e borboletas... O Sr X ficava paternalmente próximo de mim, quase que pegando nas minhas mãos para virar as páginas dos álbuns. Além do sedativo que vinha da voz dele, havia um mundo que se abriu nas coleções ali apresentadas e eu fiquei confuso sobre o motivo de eu estar ali, porque em nenhum momento ele falou do emprego de office boy! Eu queria me levantar e ir embora, mas a oportunidade de ver coleções como aquelas me faziam ficar paralisado na cadeira, ao alcance do hálito do Sr X.
Estranhamente, ele foi ficando perturbado. Estava frio e ele começou a suar. Desapertou o nó da gravata. Abriu os botões do paletó e os botões superiores da camisa. Eu estava com frio, não sentia calor não!! E ele suava tanto e passava as mãos nos cabelos, que o penteado foi se desfazendo, desmoronando. Fiquei com um olho nas coleções e outro olho nele. Aquele homem foi ficando transtornado. Pela primeira vez na vida, eu vi a Angústia, não a abstrata, mas a concreta. Descobri que o Sr X era feito de Angústia. Vi que dentro de cada um dos olhos dele havia um menino aprisionado. E este menino era ele mesmo, quando criança. O pior é que serpentes foram se formando dentro do Sr X e se agitavam, subiam e desciam pelo corpo, quase rasgando a pele. E o corredor estava vazio naquela hora. A porta estava entreaberta e eu me lembrei das aulas da professora Rita de Cássia, que foi minha professora na 4ª série:
Nas fábulas, os animais falam e se comportam como gente. Porém, no fundo, as fábulas não são histórias sobre animais, são histórias sobre o comportamento dos seres humanos!
Ao recordar a explicação da professora, tudo se desenhou instantaneamente na minha cabeça: " O lobo, a raposa e o cordeirinho". O carteiro-raposa garimpava os meninos tímidos, solitários, que gostavam de colecionar selos, cartões-postais e caçavam borboletas para empalhá-las e colecioná-las. O chefe de gabinete-lobo ficava na espreita, dentro de um escritório maravilhoso, onde havia tudo o que poderia encantar um tenro carneirinho e ... o carneirinho da vez era eu.
Hits you when it's too late Hits you when you're down
Então, por aquela sala já haviam passado inúmeros carneirinhos da periferia! Não havia emprego... Só havia as belíssimas coleções e um homem que estava se transformando em um bicho, bem no coração da prefeitura de Poá.
Sobre a mesa, havia um abridor de cartas talhado em marfim. Eu poderia pegá-lo e libertar o menino que estava preso nos olhos do Sr X. Mas eu libertaria o menino e deixaria o homem cego. A grossa aliança de ouro no dedo do Sr X indicava que ele era casado. Provavelmente, ele tinha filhos. Um pai de família não deveria ficar cego. Mesmo que esse pai de família prometesse empregos de fumaça com o objetivo de atrair meninos para brincarem com o menino que estava preso nos olhos dele.
Its a fool's game
Nothing but a fool's game
Levantei-me.
Eu tenho que ir embora. Eu moro longe. O ônibus demora para passar.Eu tenho que ir embora!
As grossas serpentes que percorriam o corpo do Sr X foram se acalmando, perdendo dimensões, até desaparecerem. Ele parecia ter levado uma surra. Suado, despenteado, ofegante. Ele foi até o espelho. Passou o lenço pelo rosto. Ajeitou os cabelos com as mãos. Recompôs a gravata. Abotoou a camisa e o paletó. E quando se virou para falar comigo, já não se parecia mais com um bicho. Já era de novo o homem polido e gentil que me recebera há não sei quanto tempo atrás.
- Volta na semana que vem. Eu vou arrumar um emprego para você! Você volta?
Volta! Volta daqui uma semana, no mesmo horário.
Enquanto ele falava, percebi que a voz não saía da boca dele, mas dos olhos onde estava preso o menino que um dia foi aquele homem.
Concordei. Disse que voltaria.
Quando terminei de descer as escadas e alcancei a calçada que me levaria para bem longe dali, olhei para trás. Mas não deveria ter olhado, porque tenho hipoglicemia e minha cabeça rodou e vi dezenas de meninos com olhos tristes sentados no gramado da prefeitura, esperando por um emprego de fumaça. De uma janela, o Sr X seguia os meu passos. Fechei os olhos, respirei fundo. Segundos depois, quando os abri novamente, o gramado estava vazio. Ninguém estava na janela.
Eu disse que voltaria lá. Mas não voltei.
Nunca mais.
It's a heartache ...
Nothing but a heartache ...
Esse conto é atemporal, uma triste realidade que nos assombra... Parabéns pelo conto!!!
ResponderExcluirAgradecido, Kássio Barreiros Paiva! A sua leitura me honra muito!
ResponderExcluirMuitas de nós, já passamos por está situação ao procurar um emprego. Lindo este texto, parabéns!
ResponderExcluirAgradecido! A sua leitura me honra muito!
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