Pão e
circo. É isso o que Roma oferece para os seus pobres. Pão para o estômago
faminto. Circo para as almas vazias.
Andar
pelas ruas da cidade é o que fazem milhares de molambos humanos. Aprígio é só
mais um. Seu corpo come o pão. Seu espírito esvazia-se no circo. No circo ele
aprendeu que a vida vale um polegar apontando para cima ou para baixo. Nem
abdomens abertos, nem cabeças decapitadas, nem corpos mutilados ou um oceano de
sangue conseguem sensibilizá-lo mais. A primeira morte foi difícil segurar no
peito. As dezenas de outras, não o incomodam nem um pouco.
Não quer ser gladiador porque teme a
inteligência humana. O gladiador experiente luta com a mente, não com os
músculos, como a multidão acredita. Ele ainda é muito jovem para ser um
gladiador. Seria morto nas primeiras lutas. Por isso prefere ser um bestiarii.
Os animais pensam com os músculos, por isso é tão fácil matá-los.
Apesar
de ser filho da miséria, Aprígio é alto e muito forte. A primeira coisa que
aprendeu na vida foi mendigar. Na infância, pediu esmolas incansavelmente, seu
estômago parecia ser maior do que uma arena. Quando atingiu a puberdade, ele
foi convidado a deixar a mendicância. Começou a passar as noites nas
residências de mulheres e homens solitários. Ganhou roupas, boa e farta comida.
Mas as extravagâncias noturnas dessas mulheres e homens o assustavam. Eles eram
mais feras do que as bestas das arenas. De manhã, mesmo entorpecido pelo vinho,
sentia náuseas ao lembrar-se do que fizera. Sentia-se um pano sujo toda manhã,
quando tinha que sair pela porta dos fundos, antes que o sol raiasse.
Ele sempre chora quando o sol encontra a sua
face. Antes chorava porque tinha fome, agora chora porque conhece outra fome.
Uma fome de ser alguém. Ter pai, mãe, irmãos. Quem era a sua mãe? Uma das
muitas que fugiram com um desconhecido. E o seu pai? Um dos muitos que se
esqueceram de ir buscar os filhos na Praça do Mercado. Por dez dias e dez
noites ele esperara o pai ir buscá-lo. Ele vira as mães abandonarem os seus recém-nascidos
na calada da noite. Vira homens rasgarem a roupa de mulheres que dormiam na
praça e usá-las de um modo que ele não entendia. Por dez dias longos e dez
noites intermináveis ele chorou, mas ninguém o ouviu. Comeu os restos que caíam
no chão. Ninguém percebeu. Fez suas necessidades em público, apenas se
desviaram da sua presença incômoda. O frio o aconchegou. O medo o envolveu com
suas mãos tenebrosas. Fugiu dali, antes que algo pior acontecesse.
Agora, ele não sabe qual é a sua
idade. Dezesseis? Dezoito? Quem sabe?
O circo está cheio, a plateia
grita. O sangue tinge a arena. Um leão da Núbia já estraçalhara um bestiarii.
Gritos! Aplausos! O sangue humano embriaga mais a alma do povo do que o vinho!
Homens aplaudem, mulheres gritam em êxtase. Roma inunda-se na histeria. O leão
arranca um braço do cadáver e os uivos humanos atingem o céu! A fera arrasta os
restos daquele corpo que já esteve de pé, falou, cantou, dançou, sonhou... Quem
sabe até amou?
Amar: o que seria isso?
Aprígio
repete:
- Amor!
Prepara-se. Hoje enfrentará um tigre. Ele
prefere enfrentar leões, ursos e tigres do que as bestas humanas que superlotam
a cidade dos Césares. Dentro da arena, perto das feras, ele se sente mais
seguro. As ruas de Roma é que são perigosas. Elas roubam a chama que as pessoas
trazem dentro de si. As pessoas ficam escuras por dentro. Na face, os olhos
desaparecem. Ficam apenas dois buracos profundos.
Mais um
dia no circo. Mais um tigre para matar. Ele entra na arena, avança. A lança em
riste. O escudo bem posicionado. A multidão delira! Quem será que ela quer ver
morto: o bestiarii ou o tigre?
Acima
de tudo, impassível, o azul do firmamento e o deus-sol. Deus Sol Invictus! A
fera também avança. A multidão se cala. O bestiarii olha para o céu. A turba
acompanha-o. O que esse jovem vê no céu?
O tigre
prepara-se para o salto. Aprígio deixa o escudo cair. A multidão mergulha num
silêncio que grita. A lança no chão. O circo todo está perplexo. Aprígio, olhar
fixo no céu, sorri. O imperador levanta-se. Roma o acompanha. Os deuses romanos
abandonam o seu ócio para ver o que se passa na Terra.
Aprígio
sorri. E se existir um lugar além da vida? A morada dos deuses ou o Paraíso dos
hebreus? Ele já ouvira, na Praça do Mercado, um velho hebreu falando de um
“Reino”. O ancião falara num Latim quase incompreensível, mas ele entendera a
parte do “Reino”.
-
Apolo, meu pai!
O tigre salta.
Se quiser, ele apanhará a lança e acertará o
coração do grande felino. Se quiser, ele se esquivará e o golpeará por trás. Se
ele quiser...
Mas o
céu é azul. Talvez esse azul seja a porta da Morada dos Deuses ou do “Reino”
dos hebreus. Em Roma todos os povos falam de um lugar para se viver depois
dessa vida. Ele já ouvira tantas versões da mesma história...
O hálito da fera é quente. As suas presas, de perto, são bem mais
pontiagudas...
Se ele quiser, ainda poderá se esquivar. É o melhor bestiarii de todo o
Império!
Só basta ele querer viver. Continuar enchendo o estômago. Continuar
respirando. Dormindo e acordando. Deitando-se com mulheres desconhecidas para
aliviar a pressão dos testículos. Lavando o corpo para retirar o pó e o suor.
Isso é viver!
Aprígio, Roma quer que você viva! Aprígio, a multidão grita o seu nome!
Ela quer que você viva e a fera morra! Aprígio! Aprígio! Aprígio! A multidão
sabe o seu nome! O Imperador grita o seu nome para acordá-lo da sua paralisia.
O tigre está suspenso no ar...
Aprígio, você é forte! Não é bonito, mas o seu
corpo é um monumento! Você venceu a fera da fome, comeu todo quanto é tipo de
resto de comida. Comeu ratos mortos. Matou ratos vivos para comê-los. Comeu
baratas! Elas até que são apetitosas!
Lembra-se? Quando era criança, você
comia centenas de baratas numa única noite. O seu corpo, nutrido pelo lixo de
Roma, por centenas de ratos e incontáveis baratas, tornou-se colossal. E você ainda não tem nem vinte anos!
Aprígio,
não deixe Roma órfã de seu melhor bestiarii. Reaja, Aprígio! A fera está suspensa
no ar. Congelada no tempo. Apolo parou o tempo para você abaixar-se, pegar a
lança e cravar no coração do belo animal africano. Basta você querer!
O golpe
das patas quebra a clavícula e inúmeras costelas. Os dentes penetram na face,
esfacelando os ossos do crânio, que se parte como um melão que fosse
arremessado ao solo. Massa encefálica espalha-se pelo chão. As artérias
partidas ejetam o líquido precioso, mantenedor da vida. As garras dilaceram a
pele, desvendam o segredo do corpo humano: o fígado, o emaranhado dos
intestinos, o estômago... Ah! O estômago que fez você sofrer tanto, Aprígio!
Conto premiado no Festival da Música e Poesia de Paranavaí-PR, 2014
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