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Bestiarii, Antônio Neto


  Pão e circo. É isso o que Roma oferece para os seus pobres. Pão para o estômago faminto. Circo para as almas vazias.
  Andar pelas ruas da cidade é o que fazem milhares de molambos humanos. Aprígio é só mais um. Seu corpo come o pão. Seu espírito esvazia-se no circo. No circo ele aprendeu que a vida vale um polegar apontando para cima ou para baixo. Nem abdomens abertos, nem cabeças decapitadas, nem corpos mutilados ou um oceano de sangue conseguem sensibilizá-lo mais. A primeira morte foi difícil segurar no peito. As dezenas de outras, não o incomodam nem um pouco.
   Não quer ser gladiador porque teme a inteligência humana. O gladiador experiente luta com a mente, não com os músculos, como a multidão acredita. Ele ainda é muito jovem para ser um gladiador. Seria morto nas primeiras lutas. Por isso prefere ser um bestiarii. Os animais pensam com os músculos, por isso é tão fácil matá-los.
   Apesar de ser filho da miséria, Aprígio é alto e muito forte. A primeira coisa que aprendeu na vida foi mendigar. Na infância, pediu esmolas incansavelmente, seu estômago parecia ser maior do que uma arena. Quando atingiu a puberdade, ele foi convidado a deixar a mendicância. Começou a passar as noites nas residências de mulheres e homens solitários. Ganhou roupas, boa e farta comida. Mas as extravagâncias noturnas dessas mulheres e homens o assustavam. Eles eram mais feras do que as bestas das arenas. De manhã, mesmo entorpecido pelo vinho, sentia náuseas ao lembrar-se do que fizera. Sentia-se um pano sujo toda manhã, quando tinha que sair pela porta dos fundos, antes que o sol raiasse.
   Ele sempre chora quando o sol encontra a sua face. Antes chorava porque tinha fome, agora chora porque conhece outra fome. Uma fome de ser alguém. Ter pai, mãe, irmãos. Quem era a sua mãe? Uma das muitas que fugiram com um desconhecido. E o seu pai? Um dos muitos que se esqueceram de ir buscar os filhos na Praça do Mercado. Por dez dias e dez noites ele esperara o pai ir buscá-lo. Ele vira as mães abandonarem os seus recém-nascidos na calada da noite. Vira homens rasgarem a roupa de mulheres que dormiam na praça e usá-las de um modo que ele não entendia. Por dez dias longos e dez noites intermináveis ele chorou, mas ninguém o ouviu. Comeu os restos que caíam no chão. Ninguém percebeu. Fez suas necessidades em público, apenas se desviaram da sua presença incômoda. O frio o aconchegou. O medo o envolveu com suas mãos tenebrosas. Fugiu dali, antes que algo pior acontecesse.
   Agora, ele não sabe qual é a sua idade. Dezesseis? Dezoito? Quem sabe?
   O circo está cheio, a plateia grita. O sangue tinge a arena. Um leão da Núbia já estraçalhara um bestiarii. Gritos! Aplausos! O sangue humano embriaga mais a alma do povo do que o vinho! Homens aplaudem, mulheres gritam em êxtase. Roma inunda-se na histeria. O leão arranca um braço do cadáver e os uivos humanos atingem o céu! A fera arrasta os restos daquele corpo que já esteve de pé, falou, cantou, dançou, sonhou... Quem sabe até amou?
   Amar: o que seria isso?
  Aprígio repete:
  - Amor!
  Prepara-se. Hoje enfrentará um tigre. Ele prefere enfrentar leões, ursos e tigres do que as bestas humanas que superlotam a cidade dos Césares. Dentro da arena, perto das feras, ele se sente mais seguro. As ruas de Roma é que são perigosas. Elas roubam a chama que as pessoas trazem dentro de si. As pessoas ficam escuras por dentro. Na face, os olhos desaparecem. Ficam apenas dois buracos profundos.
  Mais um dia no circo. Mais um tigre para matar. Ele entra na arena, avança. A lança em riste. O escudo bem posicionado. A multidão delira! Quem será que ela quer ver morto: o bestiarii ou o tigre?
  Acima de tudo, impassível, o azul do firmamento e o deus-sol. Deus Sol Invictus! A fera também avança. A multidão se cala. O bestiarii olha para o céu. A turba acompanha-o. O que esse jovem vê no céu?
  O tigre prepara-se para o salto. Aprígio deixa o escudo cair. A multidão mergulha num silêncio que grita. A lança no chão. O circo todo está perplexo. Aprígio, olhar fixo no céu, sorri. O imperador levanta-se. Roma o acompanha. Os deuses romanos abandonam o seu ócio para ver o que se passa na Terra.
  Aprígio sorri. E se existir um lugar além da vida? A morada dos deuses ou o Paraíso dos hebreus? Ele já ouvira, na Praça do Mercado, um velho hebreu falando de um “Reino”. O ancião falara num Latim quase incompreensível, mas ele entendera a parte do “Reino”.  
  - Apolo, meu pai!
 O tigre salta.
 Se quiser, ele apanhará a lança e acertará o coração do grande felino. Se quiser, ele se esquivará e o golpeará por trás. Se ele quiser...
  Mas o céu é azul. Talvez esse azul seja a porta da Morada dos Deuses ou do “Reino” dos hebreus. Em Roma todos os povos falam de um lugar para se viver depois dessa vida. Ele já ouvira tantas versões da mesma história...    
  O hálito da fera é quente. As suas presas, de perto, são bem mais pontiagudas...
  Se ele quiser, ainda poderá se esquivar. É o melhor bestiarii de todo o Império!
  Só basta ele querer viver. Continuar enchendo o estômago. Continuar respirando. Dormindo e acordando. Deitando-se com mulheres desconhecidas para aliviar a pressão dos testículos. Lavando o corpo para retirar o pó e o suor. Isso é viver!
   Aprígio, Roma quer que você viva! Aprígio, a multidão grita o seu nome! Ela quer que você viva e a fera morra! Aprígio! Aprígio! Aprígio! A multidão sabe o seu nome! O Imperador grita o seu nome para acordá-lo da sua paralisia. O tigre está suspenso no ar...
  Aprígio, você é forte! Não é bonito, mas o seu corpo é um monumento! Você venceu a fera da fome, comeu todo quanto é tipo de resto de comida. Comeu ratos mortos. Matou ratos vivos para comê-los. Comeu baratas!  Elas até que são apetitosas! Lembra-se?  Quando era criança, você comia centenas de baratas numa única noite. O seu corpo, nutrido pelo lixo de Roma, por centenas de ratos e incontáveis baratas, tornou-se colossal.  E você ainda não tem nem vinte anos!
  Aprígio, não deixe Roma órfã de seu melhor bestiarii. Reaja, Aprígio! A fera está suspensa no ar. Congelada no tempo. Apolo parou o tempo para você abaixar-se, pegar a lança e cravar no coração do belo animal africano. Basta você querer!
  O golpe das patas quebra a clavícula e inúmeras costelas. Os dentes penetram na face, esfacelando os ossos do crânio, que se parte como um melão que fosse arremessado ao solo. Massa encefálica espalha-se pelo chão. As artérias partidas ejetam o líquido precioso, mantenedor da vida. As garras dilaceram a pele, desvendam o segredo do corpo humano: o fígado, o emaranhado dos intestinos, o estômago... Ah! O estômago que fez você sofrer tanto, Aprígio!

Conto premiado no Festival da Música e Poesia de Paranavaí-PR, 2014




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