Pular para o conteúdo principal

Nascido em 23 de Março: Moacyr Scliar.

         A Festinha do Colégio  
  
     Se você é pai, você sabe: você pode faltar à festa de aniversário de seu chefe, você pode faltar  ao encontro com o sujeito que ia lhe arranjar um emprego milionário, você pode até faltar a uma audiência com o governador, mas você  não pode faltar à festinha de fim de ano da escola de seu filho. É uma expectativa que começa, aliás, muito antes  da data da festa. Eu diria que já no primeiro dia de aula as professoras começam a programar a apresentação. E aí você começa a receber cartinhas, com as coisas que você precisa comprar para a fantasia do herói: setenta metros de veludo cotelê, noventa metros de fita, dois quilos de pedras preciosas... Mas você compra, porque afinal é o seu garoto que vai se apresentar . Aí você é convocado para saber do que se trata: é uma peça infantil que foi bolada por uma das professoras. Chama-se A Festa do Pedrinho, ou algo no estilo. Nada do outro mundo, naturalmente, mas o que falta em sofisticação sobra em número de personagens: sim, porque nenhum pai se conforma em ver seu rebento fora do espetáculo. De modo que, como naqueles filmes grandiosos do Cecil B. de Mille, o que  mais tem são cenas de multidões. Só de soldadinhos são uns duzentos - um exército de fazer inveja a qualquer república  latino-americana. Palhacinhos, uns trezentos (Idem, eu ia dizer, mas não quero ofender certos brios). E mais os macaquinhos, e as bruxinhas, e os bonequinhos... E todo o mundo precisa dizer um versinho ou cantar uma cançãozinha. A de seu filho você aprende logo, porque é só o que ele canta em casa.  Lá pelas tantas seus companheiros de trabalho o estarão olhando de forma estranha, e aí você se dará conta que passa o dia cantarolando: "Eu sou um bonequinho/Tão engraçadinho..."Não ligue. É inveja deles. No fundo também gostariam de ser um bonequinho engraçadinho. Chega a tarde da festa. O início está marcado para as três, mas à uma você já está sentado na primeira fila do auditório do colégio, máquina fotográfica em punho. Sua mulher pergunta se você está nervoso. Que nada, você diz, e toma rapidamente dez comprimidos de Valium.
     Começa a apresentação. Entram os palhacinhos, as bruxinhas - você acha todos muito engraçadinhos, naturalmente, mas você sabe que o artista mesmo, aquele que dança como o Barishnikov e canta como o Pavaroti é o seu filho. E eis que aparece! Você delira, você bate palmas, você! Sua mulher está constrangida, mas que importa, pai é pai, se o pai não apoia o filho quem vai apoiar? E chega o momento culminante: seu filho vai cantar.  Eu sou o bonequinho - começa ele, e pára: esqueceu. Por incrível que pareça, esqueceu. Você se contorce na cadeira, angustiado! - a vontade que você tinha era de pular para o palco:
      -Eu sou o bonequinho, minha gente! Eu é que sou o bonequinho!
     Mas não dá: apesar de tudo, você ainda tem superego. Tudo o que você consegue é assoprar para ele: tão engraçadinho! E de repente o garoto lembra e canta eu sou o bonequinho, tão engraçadinho - e você aplaude de pé, grita bravo e pede bis. Termina a apresentação, você pega o artista e vai para casa. Ele esquecceu a festa, já está falando em praia, mas você vê mais longe - uma turnê pela Europa, uma aprensentação no Lincoln Center de Nova York... Afinal sonhar não é proibido. Muito menos para os pais-corujas.

Fonte:Um País Chamado Infância, Ed. Ática 2002, págs. 38-40
Caricatura: Fraga.

     

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.