Pular para o conteúdo principal

O Taxista de Jesus, José Eduardo Agualusa

         - O amigo acredita em Deus?

     A pergunta apanhou-me desprevenido. Deus?  Eu estava dentro de um táxi, tinha fechado a porta e indicado o destino. Ainda pensei em sair mas o carro já corria, às curvas, por entre o trânsito transtornado de Lisboa. Assim, acomodei-me no assento, suspirei fundo e preparei-me para o pior.
     -Pois olhe - continuou o homem - eu também não acreditava. Um dia, porém, estava aqui ao volante,olhei para trás e quem é que vi sentado, muito sentado mesmo, onde agora está vossa excelência? Nosso Senhor Jesus Cristo!...
     Reparei melhor no taxista: era um sujeito sem grande relevo, quero eu dizer,  olhava-se para ele e estava ali, mas olhava-se para o outro lado e era como se o pobre tivesse deixado de existir. Um tipo assim, tão desartificioso, não se diria capaz capaz de ficções. Por isso inclinei-me para a frente e quis saber o que achara ele de Jesus Cristo.
     - Uma simpatia, amigo, um príncipe. Mas se você o visse não o reconheceria. Cortou o cabelo, tirou a barba, parece outro.
     - E ele, como o reconhecera? O taxista encolheu os ombros:
     - Não o reconheci; Jesus revelou-se. Disse-me: filho,eu sou o Cristo, e então olhei para trás, aqui pelo retrovisor, e vi aquele arco de luz na cabeça dele.
     Estendeu-me uma resma de papéis coloridos:
     - Não acredita? Leia, são as minhas conversas com Jesus. ele aparece-me todas as sextas-feiras.
     Aparecia às sextas, sentado no banco de trás, e saía sempre no Mosteiro dos Jerónimos. O taxista regressava imediatamente a casa. tinha de escrever as palavras do filho de Deus, porque se não fizesse depressa esquecia-se:
     - A minha memória, o senhor compreende, já não é a melhor.
     Cada folheto colorido trazia uma conversa com Jesus. O taxista vendia um conjunto de cinco por trezentos escudos. DEz custavam quinhentos.
     - Estou a fazer um bom preço - assegurou - veja bem, trata-se de informação atualizada e confidencial. Não é como na Bíblia, um livro antigo, ultrapassado.
     Devolvi-lhe os folhetos e disse-lhe que mesmo assim continuava a não acreditar em Deus. O homem suspirou:
     -E em extraterrestrres, o amigo acredita?
     Para os ateus ele vendia vídeos com imagens de discos voadores. Disse-lhe que também não acreditava em extraterrestres.
     - Só acredito no Saci Pererê.

Catálogo de Luzes, José Eduardo Agualusa, Rio de Janeiro, Ed. Gryphus 2013, págs.37-38.

Imagem: Feminino Sagrado

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.