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Metonímia, Ou A Vingança do Enganado, Rachel de Queiroz ( Março: mês da mulheres)

 (Drama em três quadros) 

Quadro I



     Metonímia - a palavra me ficou na memória desde o ano de 1930, quando publiquei o meu livro de estréia, aquele romance chamado O Quinze. Um crítico, examinando a obrinha, censurava-me porque, em certo trecho da história, eu falava que o galã saíra a andar "com o peito entreaberto na blusa". "Que disparate é esse?", indagava o sensato homem. "Deve-se dizer é: blusa entreaberta no peito". Aceitei a correção com humildade e acanhamento, mas aí o meu ilustre professor de latim, Dr. Matos Peixoto, acudiu em meu consolo. Que estava direito como eu escrevera;que na minha frase eu utilizara uma figura retórica, a chamada metonímia - tropo que consiste em trasladar-se a palavra do seu sentido natural da causa pelo efeito, ou do continente para o conteúdo. E citava o exemplo clássico: "taça espumante" continente pelo conteúdo, pois não é a taça que espuma e sim o vinho. Assim sendo, "peito entreaberto"estava certo, era um simples emprego de metonímia. E juntos, numa nota de jornal, meu mestre e eu silenciamos o crítico. Não sei se o zoilo aprendeu a lição. Eu fui que não esqueci mais. Volta e meia lá aplico a metonímia - acho mesmo que é ela a minha única ligação com a velha retórica.
     Faz pouco tempo, por exemplo, dei com uma ocorrência de metonímio prática: certa senhora nossa conhecida, há anos hospedada numa pensão, saiu de repente da casa e passou a ser inimiga mortal da senhoria. Indagada da gente porque aquela inimizade repentina, quando todos sabiam que a dona da pensão era boa alma, lhe dava injeções, lhe emprestava a bolsa de água quente e a acudia nos seus acessos cardíacos, a ofendida explicou:
     - O que eu não perdôo a ela é o telefone. Todo o dia o telefone da copa me chamava - eu ia ver era trote.
     - Não. Mas de quem é o telefone?
     Agora sei de outro caso de metonímia aplicada, que é ainda mais importante, pois se trata de caso de crime. Relação de causa e efeito, ou mesmo culpar o continente pelo conteúdo - qualquer dos dois dá certo.
     Assim pois aconteceu numa cidade do interior - não conto onde, para não dar lugar a maledicência. Diga o pecado mas não diga o pecador.
     Pois nessa cidade do interior havia um homem; não era velho, mas pior que velho, porque era gasto.      Em moço sofrera de beribéri, o que lhe arruinou para sempre o futuro. Tinha as pernas fracas, o peito cansado e asmático, a cor terrosa, o olhar vidrado de doente crônico. Contudo era homemmde algumas posses, cas própria com loja contígua, onde instalara um armazém; vivesse ele no Ceará, o armazem se chamaria bodega, em Pernambuco venda, no Pará mercearia em São Paulo empório. E já que eu não vou designar o local do crime, qualquer nome desses serve. Bodega ou empório, era comércio, e quem tem comércio tem dinheiro; de jeito que, apesar de tão mal-ajambrado, o nosso homem casou. Justiça se fa;ca, que não tentou a Deus com nenhuma beldade: procurou moça pobre, magrinha, operária numa oficina de roupas de homem. Diziam até que ela tinha cara de tísica. Mas não contava o prezado amigo com os efeitos da boa nutrição no metabolismo feminino. Sei é que a cara-de-tísica, livrando-se das oito horas de trabalho à mesa de costura, passando a comer bem, em casa sua, a boa carne fresca, o seu bom tutu, a sua salada de pepino, os doces de lata,as doces laranjas da serra que o marido comprava aos centos para a freguesia, mudou como se fosse encantada. Começou a botar corpo, a aumentar as polegadas nos lugares certos - parece até que estava crescendo. E as cores do rosto, então! Ainda mais que, com a afluência de dinheiro, deu pra se vestir bem, se pintar, ondular o cabelo, usar engenho e arte a fim de aumentar os dotes naturais, pois não sei se contei que, de cara mesmo, ela não tinha nada de feia.
     E assim bela e assim vestida e assim pintada e formosa, começou a lhe pesar o marido enfermiço, envelhecido antes do tempo. Que, mal fechava o armazém, tomava a janta de leite ( tinha cisma com carne0, pegava o jornal, sentava na cadeira-preguiçosa até a hora de ir para a cama. Não queria saber de cinema, nem de futebol, ne sequer de rádio. Até mesmo por amor não se interessava grande coisa, que aquele corpo franzino, amarelo, não era de pedir amores. Só a convivência morna, insossa, ité, como se diz em São Paulo.
     E foi ai que o destino saiu dos seus cuidados e fez a primeira intervenção: suscitou um sargento.

                                                                          Quadro II

     Claro, não era justo que a jovem esposa depois de recondicionada graças às finanças do marido tirasse vantagens dessa nova situação de mulher bonita, em prejuízo do supradito marido. Não era justo, mas este mundo vive de injustiças. E o sargento do Exército, da Aeronáutica, da Marinha ou dos fuzileiros ( não digo ao certo, firme no propósito de evitar identificação) - o sargento era simpático, era musculoso, er jovem, era formidavelmente marcial dentro da farda justa ao peito, o andar elástico, a fala ríspida habituada ao comando.
     Aconteceu que, um belo dia, servia a dama ao balcão ( segundo era costume do casal, enquanto o marido almoçava) quando sobreveio o sargento. O que houve, o que não houve? Hoje é difícil reconstituir. Parece que ele pediu um maço de cigarros. Depois queria um vermute. Por fim pediu licença para escutar o noticiário esportivo no rádio que tocava perto do balcão. Seria pretexto para se demorar ali, mas a moça consentiu. É difícil negar favores a sargentos, mormente um sargento daqueles. Contudo, naquele dia, além disso naquele dia ele não pediu mais que olhares. Ou no máximo disse alguma palavra, mas murmurada tão baixo que a não ouviu o resto da freguesia presente, sempre atenta a mexericos.
     Com três almoços o namoro pegara firme. E seguindo-se aos almoços uma gripe do marido, os dois caminharam muito além do namoro. Como se encontravam, onde e a que horas, não se apurou. Basta que se diga que eles se amaram de amor proibido, como Tristão e Isolda, como Paolo e Francesca.
     E o destino, que não gosta de amores ilegais e costuma castigá-los com maus fados, fez a sua intervenção: suscitou a transferência do sargento.

                                                                              ***

     Diz que só quem ama conhece a dor da separação. Os bonitos olhos da moça incharam de tanto choro. O apetite diminuiu. Já lhe transparecia, por sob o rouge da face, a antiga cara de tísica. E há de ter sido esse desgosto, assim alardeado com pranto e fastio, que acabou por despertr as suspeitas do marido, não acordadas quando o amor florescia e tudo ainda eram rosas.
     Passou o bodegueiro a vigiar a esposa; a lhe examinar os silêncios; a lhe escutar os suspiros e os murmúrios duranre o sono. Deu para fazer pesquisas e acabou descobrindo um postal e um livro com um nome de homem escrito em ambos - e com a mesma letra. Descobriu um escudo da corporação do sargento - o que provava que o objeto dos suspiros, silêncios e murmúrios, além de homem era soldado. E tantas descobertas pequenas levaram-no afinal à maior de todas, que era descobrir que o traiam. Porque descorira cartas, as cartas de amor que vinham com carimbo distante, por via aérea, assinadas com aquele nome fatal.
     Durante cinco meses o pobre revolveu dentro do seu magro peito doente o punhal venenoso do ciúme. Como menino que descobre um ninho de pássaros e fica diariamente a vigiar escondido o número de ovos que aumenta, e de pois os progressos de choco, assim conseguira o marido uma chave falsa para o cofre de guardados da mulher; era uma caixa de madeira do Paraná, com um pinheirinho recortado na tam[a, que ele mesmo lhe dera durane a lua-de-mel, dizendo rindo: "Está aqui, para você guardar os seus segredos..."
     E a ingrata obedecera ao pé da letra.
     Todos os dias, naquela hor fatal do almoço, quando a mulher o sibstituia no balcão, ele nem cuidava da comer. Era só correr ao quarto, abrir o camiseiro, tirar a caixa de sob o monte de roupa branca, puxar do bolso a chavinha falsa e abrir ansiosamente a carta nova. E quando não havia carta nova, reler a velha, ou antes, uma das antigas, uma datada de 21 de agosto, tão cheia de recordações realísticas, qua até parecia diálogo de filme francês. Depois de ler guardava tudo, corria à cozinha, engolia depressa uma colher de caldo, roia um pedaço de pão - seria impossível comer direito com aquela amordos dois ladrões atravessado na garganta.
     Até que um dia houve provocação maior...

                                                                              Quadro III

     E um dia, como dizíamos na semana passada, houve provocação maior ou o coração do homem enganado saturou-se de ódio e ciúme até ao ponto de não poder contar mais nada. Isso não se explicou. O que se sabe é que ele retirou da gaveta do balcão um revólver que lá guardava há anos, e que fora empenhado por um devedor desaparecido. Junto do revólver estava a caixa de balas. O nosso amigo carregou a arma; e numa manhã de sol claro, eram dez horas em ponto, quando o armazém estava cheio de fregueses, viu-se que o bodegueiro apurava o ouvido, pedia licença aos presentes e transpunha a porta de comunicação da loja com a sua casa.
     Daí a pouco se escutou um ruído de altercação, um grito de mulher e três tiros cortaram o ar, em explosões secas.
     A freguesia alarmada correu, rodeou a esquina até a porta de frente da casa de moradia. Lá estava armada a tragédia: a mulher na calçada, de joelhos, aos gritos, o marido de revólver na mão, muito trêmulo, tentando soerguê-la, e, atravessado na porta, caído de borco, com o corpo para dentro da sala, um homem. Na posição em que estava não se lhe via cara nem torso,só as botinas pretas e duas pernas vestidas em calças cáqui.
     E foi o próprio marido quem falou primeiro. Ergueu os olhos para o grupo apavorado, deu com a vista no seu freguês predileto, andou um passo, tapou com o próprio corpo a porta onde jazia o morto e pediu:
     - Pode ir chamar a polícia.

                                                                                 ***

     Na Polícia explicou que matara o homem porque era um marido enganado.
     O delegado comentou:
     - É raro. Em geral vocês matam as mulheres, que são mais fracas.
     - Não, eu não seria capaz de matar minha mulher. Ela é tudo que eu tenho no mundo,bonita, delicada, cuidadosa.Me ajuda no armazém, entende de contas, faz as cartas para os atacadistas. Só ela pode fazer a minha comida - eu só como dieta especial, o senhor sabe. Como é que eu ia matar minha mulher?
     Então - ajudou o delegado - matou o amante dela.
     O homem tornou a abanar a cabeça.
     -Também não. O amante era um sargento, que foi transferido e está longe. Além do mais eu só descobri o caso depois que ele viajou. Pelas cartas. Li tudo. Sei até uma de cor, a pior delas...
     O delegado calava-se, sem entender, esperando o resto.
     E o resto veio:
     - Cada carta! Se cada carta daquelas tivesse vida, eu matava de uma por uma. Fazia a té vergonha - parecia coisa de livro. Pensei em tomar um avião e liquidr com o sargento.Mas não tenho saúde para andar de avião. Pensei em matar um colega dele, aqui mesmo, para eles tomarem ensino e não transviarem mulher alheia. Mas tive receio de enfrentar a corporação toda - o senhor sabe como eles são unidos. Tinha entretanto que dar um jeito. Já sentia medo de acabar ficando doido. Não tirava aquelas cartas da cabeça; nos dias em que não chegava uma, ficava aflito, mais aflito do que ela, que era a destinatária. Tinha que liquidar aquilo, não era? E hoje, afinal, carreguei o revólver, esperei a hora e, quando vi o desgraçado apontar do outro lado da rua, fui para casa, me escondi atrás da porta do quarto esperando.
     - O amante? - indagou o delegado, estupidamente.
     O homem se irritou:
     - Não, senhor. Não falei que não era o amante? Porém tinha culpa nas cartas. O sargento escrevia - mas era ele que trazia. Quase todo dia estava ali na porta, risonho, com o desgraçado do envelope na mão. Apontei o revólver e atirei três vezes. Ele caiu sem falar. Não, não era o amante, seu delegado. Não era o amante. Mas era o carteiro.


Em: Cenas Brasileira, Rachel de Queiroz
págs.75-83
Ed. Ática, col. Para Gostar de Ler - 2007












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