Dirijo de volta, Sílvio emborcado ao meu lado. Passa da meia-noite. Deixamos Pedro no Flamengo e atravessamos Botafogo, em direção à Barra.
Nossos encontros servem de refresco para as aporrinhações do trabalho, mulher e filhos. São a confirmação de nossa amizade, valor maior que cultuamos nesse tempo de puro egoísmo e solidão. As regras foram se estabelecendo naturalmente: só a pedido falamos de assuntos pessoais e de família; evitamos o mau humor e a depressão e só faltamos em casos graves. Discutimos futebol, política, mulheres, assuntos da semana, contamos piadas, falamos mal de conhecidos, fazemos todas as gozações permitidas pela intimidade. Mas, principalmente, enchemos a cara.
Pedro, antes de saltar no Flamengo, reclamou muito, contando que está de saco cheio da mulher, fica acordada esperando ele chegar, cheia de ciúmes, diz que somos viados, tem muita chiação, choro e há semanas ele está dormindo na sala.
Vi esse filme montão de vezes. Filho único, sem filhos, enterrei meus pais, dois casamentos de curta duração e uma porção enorme de namoradas, casos e relações de toda espécie. Agora, estou numa fase péssima para mulheres. Quase um ano sem freqüentar. Puta não conta. Francês me estropiou. Comecei encantado pelo exotismo daquela filhinha de papai. Dança do ventre e o escambau.
De início foi legal, porque sensual. Até que veio conversa de religiosidade. É mole? Logo eu, que não acredito em duende, nem disco voador. Tinha mania de limpeza, a moça. Na cobertura de alto luxo mostrou bibelôs brilhando, sem poeira. Me esfregava com bucha e sais de sândalo e trepávamos numa esteira de Bali, cercados de incandescentes e perigosas velas. O papo de depois era sempre um arraso pra mim. Sofri a humilhação de ouvir que minha maior qualidade é não pingar mijo na tábua da privada. Por essas e outras, estou ficando sozinho.
Feliz é o Sílvio, roncando aqui no lado do carona. Sim, sem sombra de dúvida, ele casou com a mulher certa. Tatí, maravilha das maravilhas. Raridade generosa, nada cobra. Tudo dá. Mãe de meu afilhado. Tatí apóia todo o tempo, no certo ou no errado, chega junto. Por isso, Sílvio, um liso que nada tinha, conseguiu até sociedade em minha corretora. Repete que bastou fazer a coisa certa: escolheu a mulher que gosta mais dele do que ele mesmo consegue gostar. Só eu sei o quanto tentei que Tatí gostasse um tantinho de nada de mim. Não consegui. De nós dois, ela gostou tudo dele.
Sempre passo em frente ao condomínio onde moro e vou até Jacarepaguá para deixar Sílvio, que acorda e me arrasta pra saideira. Normalmente aceito, embora não me sinta bem na harmonia impecável daquela casa. O que me atrai é a oportunidade de sentir Tatí, sem o sofrimento do estrago que sua presença me faz. Imaginá-la deitada no quarto, acima de nossas cabeças. Ir ao banheiro e absorver os indeléveis odores dela.
Porém, a partir de hoje, será diferente: daqui a pouco acordo Sílvio, alego cansaço, fico na Barra, e mando ele para casa dirigindo minha Toyota. Todo bêbado se julga um ás no volante.
Nota: o blog manteve a grafia original.
Sobre o autor:
Paulo Maldonado nasceu em Belo Horizonte, em 1945.Aos nove anos mudou-se com a família para Niterói, onde fez o ginásio, o clássico e a faculdade de Direito. Aos 16 anos já trabalhava em escritório de advocacia, no Rio de Janeiro, onde viveu de 1969 até 1995, quando retornou a Icaraí. Foi líder estudantil nos movimentos de 1968, contra a ditadura militar.É publicitário desde os 18 anos. Sua estreia literária se deu em 1986, com o livro de poemas Vai . Em 1988 publicou O Último Gole e, em 1997, outra coletânea de poemas com o título Vago e Vagas. Agora, em 2008, de volta ao Jardim Botânico, lança 20 Contos Curtos, seleção de contos escritos nos últimos anos.
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