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O Menino de Água, conto de Valter Hugo Mãe

O menino nadou para depois de uma onda grande e não voltou. A mãe estendeu as mãos na água buscando o seu corpo diluído. Julgava ela que o filho se diluíra como um cubo de açúcar incapaz de adocicar o mar. Jurou que o buscaria sempre. Haveria de o reconhecer nem que ele se tornasse ínfimo. Saberia dele escondido na mais insignificante gota de água. Jurava. Se o seu menino estivesse por ali, ela nunca o ignoraria.

     Nadou ao fim do mar, à boca dos tubarões, dentro do vazia das baleias, sob as barrigas cegas dos barcos, no pensamento dos peixes e nas suas costas, entre as areias,  atrás das pedras e debaixo.  Buscou na cintilação quando a liuz entrava água adentro fazendo de tudo um cristal gigante, podia ser que o filho fosse agora uma estrela e só soubesse brilhar. A mãe olhava o brilho como se o brilho a tivesse também a observar. Esperava e, de todo modo, ficaria para sempre a esperar.

     Nunca secava o corpo porque a água era agora o seu menino. Molhava-se, estendia as mãos em redor como radares aflitos  por um abraço e imaginava que a criança fazia as ondas. Talvez as ondas fossem um modo de falar. 

     E ela ondulava. Sentia as marés como a respitação do mundo a caminho. Sentia que o tempo todo era deslocação e viagem. Era como sabia que a demora lhe criava uma distância insuportável, como se omplaneta inteiro fosse constantemente para outro lugar. Como se o planeta inteiro estivesse a ir embora e ela prcisasse de agir com urgência.

     Ela também achava que o seu corpo a secar era uma partida contínua do filho. Quando sentia a roupa e a pele seca, dizia: partiu. Como se o filho levantasse do colo. De dormir no seu peito, como era costume.  O menino evaporava talvez para observar as coisas desde as nuvens. A mãe ficava sozinha. Fechava-se em casa para recordar.

     Pensava que o corpo do mar era o corpo do filho, sem distinção. O amargo do sal nunca se enganaria perante a falta de beijos, a nostalgi dos beijos e a delicadeza de sua criança. Ela nadava dentro do filho. Era por causa disso que se estendia e só então accalmava.

     Uma vez, a mãe encheu de água um enorme jarro que levou para casa sem entornar. Fitou-o perplexa. Resplandecia na luz da tarde igual a uma lâmpada líquida ou a uma estrela guardada. Cuidadosamente, abraçou o jarro e longamente o acarinhou. Era então um lugar do seu filho. Depois, a mãe afundou um soldadinho para que a água pudesse brincar. Ela disse: brinca, filho. A água aquietou-se. Talvez o menino apenas brilhasse para brincar.

     A cada dia, assim repetiu até que a casa inteira fosse o mar. Um mar emvidros puros, transparentes, através dos quais ela o vigiava e expunha ao sol. Afundava lobos e carrinhos de corrida, super herois e dinossauros. Flutuava neles barquinhos de papel e afundava mais soldadinhos. Um exército de brinquedos que, na transparência dos vidros, também esperava. E a mãe perscrutava o bulício das águas ou a maior cintilação para saber se o seu menino estava a comunicar.

     Circulava igualmente aquática, bailarina cautelosa, por entre os vidros sagrados, e eles evaporavam lentamente como se, lentamente, sem que o percebesse ou confessasse, a mãe se vingsse ao matar o mar. Haveria de ver evaporar jaro a jarro, o tamanho de um menino pequeno, até ao infinito. Amaria e culparia o mar até ao infinito.

Em: Contos de cães e maus lobos, Valter Hugo Mãe. Biblioteca azul 2019, págs. 25-27

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