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A Mulher Que Só Queria Comer Cores, texto de Ignácio Loyola Brandão


     Entre minha estada num apartamento no Pari e a ida para a alameda Itu, morei alguns dias numa
pensão de estudantes na rua Arthur Prado, no Bexiga. Nas primeiras semanas de São Paulo, até mesmo pegar o bonde que descia a avenida Brigadeiro Luís Antônio e me deixava na praça das Bandeiras, próximo ao Teatro de Alumínio, era excitante, aventura. Tudo novo, descobertas. Mais tarde soube que até Olavo Setúbal, o megabanqueiro, usava na juventude o mesmo bonde para ir à Politécnica. O Bexiga já era bairro de casas senhoriais deterioradas pelo tempo, muitas delas transformadas em coriços, outra em pensões baratas, lojas de material de construção, de móveis usados, de tecidos também baratos.
     A casa da Arthur Prado tinha uma atração. Pelas janelas, à noite, podia-se praticar o voyeurismo, porque na casa ao lado morava uma das mais belas estrelinhas do cinema brasileiro, a francesa Anik Malvil, que muitas vezes foi certinha do Stanislaw Ponte Preta.
     As certinhas, mulheres em biquinis reduzidos que nos faziam sonhar, eram publicadas doariamente na coluna do Stanislaw ( na vida real, Sérgio Porto), um dos homens mais lidos do jornalismo brasileiro.
     Anik trocava de roupa em seu quarto sem saber que, na casa vizinha, os estudantes se revezavam e brigavam por um lugar na janela. Ela teve carreira promissora até 1975, depois desapareceu completamente. O destino de quem passa como cometa e desaparece me intriga. Pelo Google, pelas redes sociais, há dezenas de pessoas procurando por Anik, inutilmente. Claro, a idade dessa gente passa dos sessenta ou setenta.
     Certa manhã, a pensão vazia, todos nos cursinhos ou faculdade, ouvi uma mulher cantar com acentuado sotaque português: " Fui bailar no meu batel".
     Era a empregada da pensão, lavaqndo roupa no tanque que havia no quintal.Os quintais ainda não tinham desaparecido. Desci a escada e, curioso, perguntei:
     - Moça, o que é batel?
     Eu nunca tinha ouvido a palavra.
     - Um barco, respondeu.
     -E a mulher foi dançar no barco?
     -É forma de dizer.
     Todas as manhãs, quando lavava roupa, ela cantava.

E o mar bramindo
Diz que eu fui roubar
A luz sem par
Do teu olhar tão lindo.

     A dona da pensão me contou:
     - Essa é a Elisa, que come cores. Portuguesa, veio com o pai, pescador. Ele morreu faz três meses.         Passou toda a vida dele aqui sentado na calçada, esperando que o mar viesse até o Bexiga.
     - Que o mar viesse?
     - Tinham dito a ele que havia um projeto para trazer o oceano de Santos a São Paulo e que um braço de mar passaria pelo Bexiga, naquele vale que tem lá em baixo. Ele sonhava com o mar e chegou com os discos de Amália Rodrigues; todas as noites, tocavam no quarto. Os hóspedes reclamavam. Essa música, "Canção do mar", era repetida, repetida. UMa noite, entraram no quarto deles, quebraram os discos e a vitrola, o velho ficou muito mal. Sentado na calçada, dizia: "E o mar cruel terá razão". Desde a morte dele, Elisa lava roupa cantando essa música.

Vem saber se o mar terá razão,
Vem cá ver bailar meu coração.

     A dona da pensão se foi, precisava ir ao cartório resolver o inventário do marido, nem me respondeu o que significava comer cores. Fui até Elisa, na cozinha.
     -Você come cores?
     - Qual é o problema?
     - Como se come cor?
     - Hoje você vai ser o amarelo: creme de abóbora.
     - E amanhã?
     - Vou comer branco
     - Arroz
     - Isso. Depois de amanhã, marrom
     - Feijão
     -Na quinta-feira, violeta
     - Beterraba.

     Ensaboava a roupa, batia na pedra do tanque, cantava:

Se eu bailar no meu batel,
Não vou ao mar cruel
E nem lhe digo aonde eu fui cantar,
Sorrir, bailar, viver, sonhar contigo

     Eu insistia:
     -O que mais?
     -Sexta é dia de verde.
     - Verde? verde pode ser alface. E rúcula, couve almeirão.
     - Caldo verde. domingo, vou comer cor de laranja.
     - Fácil: cenoura.
     - Um dia quero comer azul.
     - Azul, azul ... O que será azul?
     - Preciso descobrir. No final do ano, quero fazer um banquete.
     - Com todas as cores?
     - Com as cores do arco-íris. Mas sigo meu regime, cor a cor. Uma por dia. Por isso sou magra.
     Era mesmo, tinha uma forma física invejável. Assim, a cada dia conseguia uma comida com uma cor. Turqueza, limão, creme, ocre, e assim ao infinito. Continuava lavando suas roupas e cantando "Canção do mar", em homenagem ao pai, que em Portugal tinha sido marinheiro e pescador de sardinha, que eles comiam com vinho verde.
     - E como foi que começou essa história de comer cores? Algum nutricionista?
     - Não, o que é isso? Minha mãe, antes de morrer, prometeu a Nossa Senhora de Fátima, nossa padroeira maior, que, se eu e meu pai nos salvássemos, eu comeria coes. Meu pai era da união dos pescadores, e houve um movimento político; a polícia de Salazar prendeu todos, menos meu pai e três companheiros. O jeito foi fugir para o Brasil. Conseguimos, cumpro a promessa. E gosto. Meu pai sempre achou que havia mar em São Paulo; disseram a ele que existia um plano do governo para trazer o oceano. Coisa de político!
     Fiquei duas semanas na pensão e aí arranjei um lugar em outra, mais bem situada. Passados meses, lembri-me de Elisa e decidi visitá-la. A dona da casa contou que ela estava com anorexia. Quando esgotou todas as cores que havia, ficou à espera de que criassem uma nova, inédita. Enquanto não viessem cores novas, nada comeria.
     - E agora?
     - É esperar. Não tem outro jeito. Meu filho percorre as fábricas de tintas a cada semana. Ainda não criaram novas cores. A imaginação e a tecnologia estão em crise.
     - Vou pesquisar também, sou jornalista.
     - Faça isso. Elisa está muito fraca, talvez não resista.
     Preocupante, pensei.




Em: Solidão no fundo da agulha, Ignácio de Loyola Brandão,
Fundação Carlos Chagas, 2012, págs.47- 51

     

      

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