Tião pensou no Saci.
-Foi o mardiço que trouxe lagarta rosada no algodoal...
Baixou uma tarde de ópera lírica. Os grilos desceram a policiar a várzea. Trii...Trii.. Os acendedores de gás iluminavam a ferraria dos sapos que davam as últimas marteladas no disco da lua, uma espécie de balão metálico que iam soltar em cima do açude.
- Mais eu laço êle, - matutou o Tião.
Procurou o rancho. As árvores recuavam para dar passagem ao caminho.
Ficavam na ponta dos pés das raízes. Viu uma quaresmeira vir vindo rampa acima rumo da estrada curva sob seu fardo de flôres. Era um floricultor carregando nas costas tôda a primavera.
- Laço êle e fica meu escravo. É só jogá o têrço no rodamoinho e carrego êle prá casa. Êle vai ajudá no eito...
Alcançou uns eucaliptos crianças que aprendiam a ser árvores no colégio de um hôrto florestal.
Êta prantação mais bem educada... -pensou o caipira. - Até parece filas de seminarista...
Um tronco queimado era um prêto leproso que fazia esforços para desenterrar um perna entalada num capim. Alcançou uma encruzilhada.
Foi aqui que o Dito viu uma Mula sem Cabeça.
Espiou com mêdo. A tarde ia ficando cabocla. Viu um pasto, mourões de cêrca e junto de um ourão mais grosso, uma mula. Mas essa tinha cabeça.
As untanhas vaiaram a lua quando os sapos a soltaram na noite como um balão amarelo. Tião ouviu uma pergunta: "Foi você que fêz?." O sapo disse: "Foi..."E ela: "Não foi." "Foi...""Não foi..." Travou-se uma discussão formidável. Os grilos eram impotentes para dominar o tumulto e apitavam: tri...tri...tri... Os insetos tentavam apaziguar os ânimos pedindo silêncio: si ... si... chi... chi... E os batráquios num frege feio: "foi, não foi, foi não foi..." De inveja as untanhas fizeram outra lua na lagoa. E um frango-d'água saltando sôbre ela partiu-a em mil pedaços para a alegria plateial dos sapos construtores.
Tião vinha vindo no meio da tôdas essas coisas humanas e vivas. Olhou o céu.
- Aquêle é o caminho de São Jorge. Êle passou por ali montado no seu cavalo branco e foi deixando um rasto de poeira de estrêlas O Cruzeiro era conduzido por um Crsito invisível. Talvez fôsse uma cruz fincada no alto em memória de todos os planêtas mortos que haviam despencado no aos para o lado de outros mundos. Mas o caipira se integrava na vida cósmica pela sua ingênua e miraculosa crendice:
- Lá estão as três Marias: Maria José, mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Maria Pecadora e...
Esquecera a outra. Êle iria perguntar ao Jesuíno, que era rezador e entendido em astronomia religiosa.
- Suindara tá rasgano mortaia...
Uma tesoura sonora cortou trapos de agouros na noite. Tião benzeu-se. Pensou no Saci. Açulou o passo. A estrada caminhava sòzinha porque sabia seu rumo até na treva, mas aderia ao chão para não cair de repente nas rampas e não se afogar numa água noturna que rolava sob uma ponte. A água ia falando consigo mesma como para encurtar sua viagem. E sua viagem era eterna... Ia até o mar que ficava muito longe, dali subiria às nuvens, regressaria à sitioca do Tião para tornar a voltar pelo mesmo itinerário. E Tião, ao atravessar a ponte, pensou que a água que marulhava era a mesma de ontem. E que ela tinha a igualdade das coisas que são instantaneamente diferentes. A igualdade dos homens que passam na multidão...
- Acho que os corpo faiz baruio de noite porque tem mêdo de andá sòzinho. Que nem cabocro escoteiro que passa subiando.
E começou a assobiar porque teve mêdo do Saci.
Chegou em casa triste. Aquilo ia mal... O arrozal enxarcara com a chuva e apodrecera. Lagarta rosada comia o algodão. O bragado aparecia com nós misteriosas na clina e no rabo. "O Saci está me judiando..." banzou. "Mais eu laço êle com o terço... "
Tirou do prego o rosário. Ensinou sôbre o cobertor de baeta, como um "cowboy" laçador, um golpe certeiro. DEpois pegou na viola e aqueceu no peito tôdas as coisas tristes que ela tinha dentro: a moda da "itaianinha", o "vou me embora, vou me embora minha gente". Pôs tôdas sua melancolia na bôca e ficou triste até no fundo do coração. Quando dormiu ouviu barulho no piquête. E disse no sonho: "É o mardiço do SAci que está dando um nó no rabo do bragado.". E quando com o pica-pau deu um tiro messe diabo o moleque de uma perna só e chapéu vermelho soltou um pulo e uma gargalhada. E disse: "Tião não seja trouxa! Bago de chumbo não pega em Saci..." Êle correra para ir buscar o têrço. Mas o moleque escarrapachado no pescoço de cavalo enterrava na sua barriga uma espora de fogo e fugia a galope na estrada que ia ficando sempre mais estreita, sempre mais estreita como o fundo de um funil.
O Moreli negou a existência do trasgo.
- Ma che ... Ma che... Fantasticherie... Imbecilitá...
Tião cuspiu de esguicho. Pareceu-lhe aquela oposição desafôro à sua terra e à sua gente. E nesse instante amou o Saci como um demônio familiar. E sentiu-se o mais vivo que nunca.
- Gente que num acredita em assombração não acredita nem em Deus - revidou agressivo. E por solidariedade jacobina sentiu-se vagamente aliado do fantasma unípede. Desejou que êle plantasse tiririca no feijoal do Moreli. Mas Saci era brasileiro demais para rodear a vida forasteira de lígure. êle era para o caipira como um anum para o gado: uma espira de asa negra, irônica e constante. Só vivia presente à imaginação que o criava. Abusão atávico, era fiel à sua raça Por isso, um dia, quando Tião modorrava na sua rêde, ele bateu na porta com estrondo.
- Entre
O Saci entrou. Era vago como fumaça e o caipira não "sentiu" se êle tinha o chapéu vermelho na cabeça. Sentou-se num tôco de lenha junto do fogo.
- Que você quer?
- Nada. Quero remexer no seu quarto...
A porta ficara entreaberta. Num instante tudo ficou revolucionado. O chapéu do Tião saltou de prego fincado no muro. Um jornal velho criou asas. A porta que dava para o piquête bateu num estampido. Uma palma benta, junto de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida , despencou da parede. Tião, alarmado, acordou da modôrra. Correu para fechar a porta sem pensar mais no Saci, resmungando amuado:
- Porquêra de pé de vento! Chove na certa...
Através da janela viu na estrada galopadas de poeira. E estrelaram o chão cusparadas grossas de chuva.
Desceu ao ribeirão para examinar os parís e as varas de espera. Viu um carapinhá estilizando um condor num tronco decorativo e solitário. Atirou-lhe uma pedrada berrando: "Você é o Saci das artura porquêra!...
O pássaro fêz um arco sonoro no ar de onde disparou até o ouvido do Tião a flecha irônica de um "pinhé"! A erva de rato ensanguentava a guanxuma dos pastos. O atalho entre ela era uma criança correndo até o barranco para brincar no ribeirão.
- O ribeirão tá grosso cô a enxurrada - pensou Tião.
- No mínimo três piracanjuba e umas déis chapara
A água côr de estanho era uma estrada líquida que andasse por si mesma. As cabeças dos tinhorões se dependuravam para ver e ficavam nisso com um espanto idiota. Um caniço fingia pescar na sua paciência inútil de vara sem linha e sem anzol. O sapé verde trepava pelo barranco com mêdo de ser arrastado pela corredeira. Só uma canoa de cabreúva arriscava-se a ficar sôbre o rio numa trepidação de equilibrista no arame.
Tião arregalou os olhos:
- Ué?
Duas varas de espera, fincadas no barranco, estavam quebradas. Nas outras duas os dourados haviam arrebentado a linha. Puxou a última.
- Hepa! ... Qué vê que é dorado?
Fêz um esfôrço para arrancá-la d'água.
- Será sucuri?
Puxou ainda. Fisgado no anzol. enxarcado de água, apareceu um selim velho e rôto.
Artimanhas do Saci. - Mardiço do veiáco!
Na venda do "Zar6oio" - no entroncamento da estrada de rodagem com a do Chapadão - ouviu dizer a um doutor de "pince-nez" que viera curar barriga dágua de mulher do vendeiro:
- Tudo isso é superstição ... Basta examinar o Saci: é apenas a humanização de um espectro, isto é, uma refração fantasmal das astúcias e crendices caipiras. No fundo um ingênuo inofensivo, um gaiato fazedor de picuinhas. Grotesco e simpático...
Tião, quando saiu, reparou da porta que o alazão do doutor tinha um nó na cauda. E sorriu:
- Depois esse bocó d mola ainda diz que Saci não existe... Que trôxa!
E pareceu-lhe ver na poeira até o rasto unípede de irrequieto demônio. Por que não?
espaço
Zoada de mosquitos. Sol. Preguiça laminada de ouro chapeando o algodoal quieto do meio-dia sem vento. Uma paineira. Tião à sombra da paineira. Uma garrafa de pinga pela metade. Pernilongos.
- E por que você me amola caboclinho?
- Uai... Porque quero...
Tôdas as coisas são fundidas em chumbo. A mão esquerda do Tião pesa duas arrôbas. Se aquela nuvem despencar de lá arrebenta com a terra. Com certeza há um fio de arame dependurado no céu daquele corvo...
- Vá s'imbora. Tô cum priguiça, caboclinho...
- Durma, uiái...
- Mas você tá fazendo: pium...pium...
O pernilongo é uma agulha de gramofone: pica e zumbe. O braço de Tião não o defende; criou raízes e grudou-se na terra. O Saci o arrelia.
- Vá s'imbora...
- Não vou, t'ai.
Quando a gente morrer fica assim: parado... Uma pedra ao sol, um coqueiro no chão como um espanador, uma volúpia muscular de não mexer, de silêncio, de vazio... Não há ,mais lagarta rosada, nem lama podre no arrozal, nem selim no anzol pescador. Não há pensamento, por isso não há aflição.
- Saci, vá s'imbora. Deixe o Tião sossegado.
- Que será da sua vida se eu for s'imbora? Chiii... Que tristeza! Eu sou o seu mistério, seu bôbo! Eu encho com preocupação e surpresas o lado de lá... Tenho uma perna só. Tomara que você nunca me encontre com as duas, Tião, porque nesse dia morrerá a sua inquietação e você tomará a desiludida posse da vida.
Assentei-me perto dela
comecemo a conversá,
dispidi da intaianinha...
Um pedaço de alma ficou no chôro do bordão em pestana. Que céu êsse tão fino, tão largo, tão limpo... Vontade de dar um abraço na lua! Tião amarra o coração com silêncio,senão êle sai todo na cantiga... Caboclo duro é mole por dentro.
Dispidi da intaianinha
ela começô a chorá...
Maria Gertrudes, maracujá do mato. Ela deve fazer crac! nos dentes, porque está tesinha como um couro de pandeiro... A sela do bragado dá garupa pra dois e a vida seria um paraíso, por êsse mundo aberto sem porteiras, sentindo nas costas as esporas de fogo dos peitos da cabocla... Maria Gertrudes tem mandinga nos olhos meia-noite. Pudesse enterrar uma faca no sangrador do Salustiano que a prendeu na chincha do seu malacara... Vida de cachorro.
Cabelo e trança marela
penteado sem amarrá...
Lagarta rosada deu ni algodão. A chuva escangalhou o arrosal. Mas a terra está sempre no cio e seus músculos são de macho. Há muito palmito no mato para as ripas e boa perobeira para pé-direito. Até cortina de chita nas janelas se ela quisesse. O Salustiano é como pé de vento que arranca a flor e não carrega. Cigano barganhador de cavalo, sem pouso nem eira, hoje com tropa chibante, amanhã arriscando no búzios a prata do arreio.
Dispidi da intaianinha...
A lua parou em cima da caviúna para escutar melhor. "Tião: eu vou dizer pra ela que você está penando..." Por que tôdas as coisas compreendem seu sofrimento? Ah, Maria Gertrudes... Maria Gertrudes... Não é verdade que êle tem lágrimas nos olhos?
O violão ficou com mêdo de mexer com suas mágoas. Recolheu no seu bôjo sonoro tôda a sua angústia. Êle parece a canastra onde Tião guarda tudo o que é triste. Nem é feito de madeira, o coitad: esticaram no seu coração as cordas dos seus nervos. E suas notas são gôtas de sangue de um peito que as navalhas das unhas do violeiro vão cortando, a pingarem pela ferida sonora da cantiga.
espaço
Os bois tinham olhos de gente e iam mastigando alguma reza. Levavam no pescoço o escapulário cilício das cangas.
- Êia, Espuleta!
Os carretéis das rodas iam desenrolando no chão as duas firas do rasto.
- Êia, Furquia!
Tôda a floresta derrubada, queimada, martirizada, gemia no eixo da cangirana. Calor. Aeroplanos nanicos de anuns vampiros sonoros das vacas e terneiros. Calor. Tédio chato sem ruídos de pastos. Calor. Calor...
- Êia, Priguiça!
Os bois flagelavam-se com a serpente acastanhada da cauda para não caírem de sono na quentura do dia escandalosamente tropical.
Passo de entêrro lento, sonolento, lânguido, longo. CArpideira de chiado gemendo atrás. Préstito fúnebre da safra de Tião: dois carros de milho que vão da roça ao paiol! ... Tudo o que sobrou do suor de um ano: algumas espigas.. Que espiga!
Tião olha o milho que tirou do carro:
- Mardiço Saci! Cadê o arrozá? Cadê o argodoá? Purquêra...
Em cada espiga está muito dos seus músculos e tudo de esperança. Entre seus lábios de palha uma espiga ri uma risada com todos os seus dentes de ouro. Tem uma barbinha amarela de Satanaz, por isso é mais irônica. Ri da friagem de junho - lembra Tião? - com geada, batata doce na fogueira e a ilusão repinicada de um catira; ri da soalheira de novembro tôda listrada de trilos estrídulos de cigarras, nas tardes de içás autogiros... Ri dos seus cálculos: "Trinta alqueires de arroz agúia... vinticinco arroba de argodão..."
- Saci dos dianho... Paciência! O ano que vem...
Os bois olham para êle com olhos de gente.
- É isso mesmo, Espuleta! Agora ocêis cóme tudo o que eu prantei...
Cap. 4
Silêncio. O Tião escarrapachado no côcho velho revirado de bruço feito banco no piquête. O Neco também está. Silêncio. Baforadas de fumo.
Fim da raça... Sua preguiça é o esfôrço bandeirante gasto por seis gerações de violadores de virgindade verde da pátria americana. Todos os desencantos da bravura vitoriosa contra o ardil tapuio, a tocaia da onça pintada, o pulo da cascavel, a picada do mosquito maleiteiro... Tôda a revelação de bruscos inéditos panoramas de lenha: rios cheios de jacarés e ilhas errantes de tartarugas. Flôres de corolas antropófagas como ritos carijós; troncos que saem andando e laçando capivaras nas cevas, portos e barreiros...
Tião fuma e pensa sem uma ideia na cabeça ôca. Neco fuma e não pensa. Silêncio.
Para o desencanto de nervos de homem que mais? Poentes de incêndio, tufões de carregar entre braços de chuva e iras de relâmpagos gameleiras de raízes como garras; cataratas que pulam montanhas, desmoronamento de barrancos enormes; aparição maravilhosa de ilhas em rios oceanos.
Tião e Neco conhecem atàvicamente todos os prodígios. Estão exaustos de milagres. Fim de raça chupada pelo esfôrço que fêz a maior pátria do continente.
- Mecê qué outra páia, Tião?
- Brigado...
Que mais? A aventura humana em terra de ciclopes esgotou sua imaginação. Então, enfarada de façanhas contra homens e contra a natureza, criou o lado de lá: Caapora azarento fumador de cachimbo; Boitatá serpente fogaréu articulada de escamas labaredas; Matuius, Goiasis, Mula sem Cabeça...Mas para conter bugres e onças a raça inicial e desbravadora blindou-se de com músculos de aço. Para conter monstros e fantasmas basta-lhe a cêrca mole da imaginação. Essa é a herança, na terra possuida e domada, aos remanescentes exaustos da estirpe de heróis: Tião, Neco, Salustiano...
- Saci anda rondando meu paió, Neco...
Lace êle com rosário, Tião.
Isso nem tem conversa!
E que tédio nas pausas imensas. Não fôra o Saci agitando-se no mistério...
- A cunversa tá boa mas já vou.
Depois o trote põe um compasso ternário no silêncio: prequetéc... prequetéc... Tião está só.
Aquele barulho no paiol... "O vaiáco taí. Agora eu laço êle". Tião saltou da cama. Pegou no rosário e abriu a janela para a noite. Um vulto confuso, miúdo, saiu do paiol numa carreira. Perdeu-se no escuro.
Fugiu... esta veiz eu vi êle...
Longe de sentir terror encheu-se de alegria. O Saci existia: era uma coisa viva. Poderia contar na venda do " Zarôio": "Onte, podia sê umas déiz hora..."
Fechou a janela. Estirou-se na cama. Banzou, pitando o longo cigarrilho d palha que punha a levitação errante e escarlate de uma brasa na treva. Teve uma sensação de orgulho: não era solitário. Alguma coisa imponderável e misteriosa o rodeava mexendo com sua imaginação, ligando à consciência de uma coisa os seus desastres e dando uma razão aos seus minúsculos aborrecimentos. Interessava a sua vida plana, sem dramas, as fôrças prodigiosas ligadas ao mesmo enigma que mantinha o equilíbrio sideral e deflagrava as minas aéreas dos coriscos. Sentia-se integrado na harmonia cósmica, como uma comparsa necessária à tragédia universal. E o Saci explicava a razão da sua vida que até ontem era um chôro de viola, a dor de uma topada numa raiz, a fôrça do seu braço abrindo sulcos na terra.
Você é danado, caboclinho... Você me aborrece, faz picuinhas, mas eu gosto de voc6e. Acho até graça, diabinho! Se eu tivesse um filho aposto que êle era moleque e travêsso como você...
-Mas você é meu pai, Tião!
-Tá lôco, excomungado! T'arrenego! Vê lá que eu sô pai de perneta que anda subiando de noite e trançando crina de cavalo.
- Você não me compreende, Tião...
- Não fique triste, caboclinho, não foi para ofender...
Eu quero bem a você... Aposto que você já me robô espiga de mio... Ah, marvado; aquelas espiga foi tudo o que deu as roça que rocei. Tô cansado, prantei argodão, prantei arroiz, prantei o mio e você escangaiô com tudo. Mas não faiz mar. A terra é boa e, depois dêste ano, tem o ano que vem. Sina de caboco é guatambu no eito. Feijão pra comê t'aí ... O bragado inda tem uma espiga no côxo. PrÔ Espuleta e Furquia Deus dá capim melado até o pasto do Neco, lá no lado do córgo, onde os porco quebraro os feixo...
Depois sonhou que o algodão espumava na ponta dos galhos. Lindos! Pisava macio na abundância fôfa da safra milagrosa. O arroz parecia dragona de coronel, todo canutilho de ouro... Quinhentos alquires! Mil alqueires! Dois mil alqueires! O Espuleta abriu a bôca mole: "Tião! Que mundo de arroiz prá eu carreá..."E uma lágrima pingou de um dos globos dos seus olhos tão humildes, tão humanos...
Cedinho correu ao paiol. O Saci roubara umas três mãos de espigas. Tião exultou! Arre! Afinal tinha uma certeza física da realidade do estrago.
O sol estava alegre como um Toni. Arreou o bragado. Tocou para a roça radiante. Sentia-se um general comandando os exércitos de cafèzais alinhados nos morros. Trote miudo de apoteose. Árvores em multidão ofegante forçando o cordão policial das cêrcas para invadir a estrada e admirar o homem que vira o Saci. Tião sentiu dentro bandeiras nacionais, arcos de bambu e a banda do Chico Pistão tocando um dobrado. Tárátanchin! Tárátanchin! Tárátanchin! ...
"Tenho uma perna só. Tomara que você nunca me encontre com as duas..."
Primeiro veio o grande cachorro prêto de vento noturno farejar e ladrar em roda da casa. Depois a fôlhas sêcas ficaram com muito mêdo e correram, redemoinharam, perseguidas por violências invisíveis. De repente: bum! o estrondo de uma mina que deflagra. Um clarão iluminando o caminho reboante da matilha dos ecos fugitivos tomados de pânico. As árvores gritaram de pavor. Depois uma saraivada de pedras. Depois chuva.
- Santa Bárbara...
Tião espiou pela janela. O pedregulho do granizo enfeitou o piquête. Diminuiu. O vento assobiou como um bêbado que vaia.
É o Saci... - pensou o Tião.
Benzeu-se. Tirou o rosário da parede. Voltou pé ante pé até a janela.
- Hoje não me escapa. Laço êle.
A chuva amainou. Entreabriu a porta. Pôs-se de tocaia.
- Minha Nossa Senhora Aparecida... Cr'em Deus Padre...
Um vulto baixinho, arisco, esgueirante. Deslocou-se da moita. Espiou. Saltou o feixo do piquête. Tem um chapéu mole na cabeça. Dirigiu-se, curvo, para o paiol. Ruido de palhas remexidas. O vulto reaparece, cauto. Pára estatelado. Uma coisa bateu-lhe brusca na cabeça: o rosário do Tião. Um grito de vitória na noite, duas mãos que o agarram pelas costas.
- Então? Peguei ou não peguei ocê, mardiço?
- Tião olha o SAci prisioneiro. São dois olhos aflitos e um tremer de susto. O milho cai-lhe das mãos negras. Ué? Tem duas pernas... Mas esse não é o Dito, o cria do Neco, o pretinho que é pião?
É oc6e, canaia?
Dito arfa, sem fala.
Então era ocê, pestinha?
Tião tonteia. O vento assobia, vaia, vaia seu grotesco mistério humanizado.
"Porquêra". Suas mãos bambeiam. Larga a prêsa que escapa. Para que presta agora a vida? Um grito. Um relâmpago. Tião olha. Na cêrca, tendo errado o pulo, ficou entalada entre duas taquaras a outra perna do Saci.
Nota: A Outra Perna do Saci é um conto que transcrito do livro Entardecer em edição especial e numerada para a MPM no ano de 1978.
O blog manteve a grafia da época, razão porquê muitas palavras estão com acentuação desnecessária. Apesar de estranho os "erros" não interferem nem diminuem a compreensão nem o valor do texto de Menotti Del Picchia
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