Há muitos dias estou para escrever qualquer coisa sobre dois canarinhos-da-terra que pousam todas as tardes num galho de acácia, bem em frente à minha janela. A princípio, pensei que fossem um canarinho e uma canarinha em começo de caso sentimental. Mas, não. Os dois têm cabecinhas avermelhadas e isto, em canário-da-terra, é sinal de machidão. Chegam depois das duas, instalam-se sempre no mesmo galho e ficam horas a fio conversando, contando coisas, passando o tempo. De vez em quando, um levanta a asa e o outro coça. É a única atitude mais ou menos suspeita, nessa amizade de passarinho, que venho acompanhando há já algum tempo. No mais são sóbrios, dignos e respeitáveis. Devem te alguma coisa em comum para debater diariamente. Talvez seja literatura, talvez seja música. Acontece que, quando algum sanhaço esvoaça e vem pousar na mesma árvore, eles se olham ( como se consultando) e voam para longe. Fazem questão desse isolamento e, mesmo quando o passarinho que chega é canário também, dão o fora demonstrando, claramente, que não são de súcia (palavra predileta da minha avó). Tenho certeza de que se trata de uma dupla, assim como Joel & Gaúcho, Alvarenga & Ranchinho ou Lauro Borges & Castro Barbosa. Mas também desconfio de que um deles é o Vinicius de Moraes dos canários. O outro - quem sabe? - é possível que seja João Cabral de Melo Neto.
Hoje, quando cheguei para trabalhar, eles estavam quase no parapeito da janela. Não tomei precauções de silêncio, não andei nas pontas dos pés e eles continuaram, como se minha presença ou fosse amiga e costumeira demais ou fosse tão desimportante que não merecesse a fuga. Estavam, porém, mais indóceis. De frente, um para o outro, davam pulinhos, cochichavam, metiam as cabecinhas embaixo das asas... Faziam, enfim, centenas de trejeitos. Sua atitude era assim, a de quem está contando aventuras galantes. Então, não me contendo, gritei da minha cadeira:
- Falando mal das canarinhas, hein?
Parece que estavam mesmo, porque os dois ainda tentaram disfarçar um pouquinho e, logo após, sumiram no voo reto para outra árvore defronte. Tinham sido flagrados em maledicência.
(Originalmente publicado no Diário Carioca em 10 de julho de 1954)
Vento Vadio, as crônicas de Antônio Maria, Org.Guilherme Tauil, Ed. Todavia 2021, págs.242-243
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