A igreja era
modesta, miúda, suficiente para abrigar os fiéis. Uma capelinha. O restante da
praça, área imensa, servia a todos os moradores. Ali se juntavam, aproveitando
o sol da manhã, colocavam a conversa em dia, faziam pequenos negócios, e, na
parte da tarde, aquela terra batida, com pouca areia solta, pertencia aos
moleques. As peladas aconteciam.
Todas as crianças
da vila frequentavam a escola de manhã. Depois da aula, bastava o tempo de
tirar uniforme, engolir o almoço, os pequenos iam brotando feito pipoca nas
ruas, nas esquinas, num converseiro danado. O bando, adensado, discutia os
times, reclamava da pegada do dia anterior, traquinava novas jogadas. Levava um
bom tempo até tudo se ajeitar.
Todos descalços, as
botinas só eram usadas na escola. Os times eram divididos em: de camisa, sem
camisa. E eram camisas de botão. Não existiam camisetas para crianças, apenas
os adultos as usavam sob as camisas. Cavadas. O espaço da trave, que geralmente
era medido por cinco passos, motivo de muita briga, era delimitado por botinas
regaçadas recolhidas do lixo. O gol já havia sido balizado por tijolos, paus,
pedras. Depois de muitas cabeças de dedo esmigalhadas, optaram pelas velhas
botinas. As passadas eram motivo de muita discórdia. O goleiro reclamava que a
perna do contador era grande demais, o artilheiro queria que o mais alto da
turma fizesse a marcação. Era um tal de puxar o sapatão para lá e para cá...
A bola era de
meia. Bola de capotão era artigo de luxo que só aparecia quando chegava algum
primo distante. Assim mesmo, só podia
ser usada se o primo escolhesse o time, o que não agradava a molecada. Os
meninos da cidade grande eram sem ginga, sem malemolência, e sem contar
que as chuteiras espantavam os pés dribladores dos moleques da vila.
A cada semana a
bola era revestida com velhas meias catadas nas casas. Material cada vez mais
escasso.
E, sob sol
escaldante ou chuva mansa, as peladas eram sem fim. Interrompidas apenas quando
os raios cortavam o céu e os trovões pareciam tremer a terra. Aí, a correria
era tanta que nem os sapatões das traves eram recolhidos. E quantas camisas
ficavam para trás! Ai! E quantos puxões de orelha...
As crianças nem
percebiam o tempo passar, os meses, os anos. Tudo tão simples e bastava. Satisfazia,
era prazeroso.
De repente, um
novo pároco chegou. Por inúmeras vezes as crianças o avistavam na porta da
igreja, com as mãos em conchas protegendo as vistas do sol, olhando de um lado,
olhando de outro... Nem imaginavam as caraminholas que estavam sendo urdidas dentro
daquela cabeça.
Não demorou muito
e a notícia se espalhou. O padre decidira fazer uma igreja do tamanho da praça.
De ponta a ponta!
Os meninos, de
início, ficaram assustados, mas esqueceram. As peladas continuaram. Continuaram
até que um dia, ao chegarem na praça, a escavação estava iniciada. Muitos
pedreiros, munidos de pás, trenas, estacas, ocupavam a área do campinho. Dois
caminhões carregados de tijolos estavam alinhados na beirada do terreno.
Os meninos,
desapontados, foram se esgueirando pela velha igreja, calados. Caminhavam e
olhavam, com tristeza, a terra vermelha sendo retirada das valas. O padre, na
porta da igreja, nem percebeu a decepção das crianças.
Naquela tarde,
tudo ficou estranho. Nem havia burburinho, silêncio cavernoso. Não houve escolha de time, não houve onde
colocar os sapatões, não houve medição... Tudo quieto.
Passados alguns
dias, outro canto foi arranjado para as peladas. Ficava na baixada, um
descampado de capim verde. Sem a menor graça.
E a igreja?!
Durante quatro anos, com muitas festas, quermesses, leilões, os fiéis buscavam
recursos para erguer a igreja do pároco megalômano. E ainda bem que a capelinha foi mantida
dentro do esqueleto suntuoso da construção. As paredes começaram a ser erguidas
em toda a volta do quarteirão, descomunal, um colosso. Não havia material que
bastasse para a construção, um despropósito.
Talvez pela visão
fantasiosa, pela ambição exacerbada e majestosa do pároco, o bispado entendeu
certa patologia naquele empreendimento. Então, o padre foi substituído. Na
vila, como herança, restou o esqueleto vermelho, inacabado, inconcebível, da catedral
que nunca foi.
Os meninos
poderiam ter o campinho de volta. Não quiseram. O encanto, para eles, havia
passado. Estavam crescidos.
Nota: Texto postado com autorização da autora.
Comentários
Postar um comentário
comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.