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Modo de Amar, Valter Hugo Mãe

 Eu queria era ter um cão, mas a minha mãe diz que os cães fazem muito barulho a ladrar e que, por
vezes, mordem. Diz também que se tivermos um cão durante muito tempo ficamos com a cara parecida com o seu focinho. A mim custa-me acreditar, mas é isso que a minha mãe me responde. Nem imagina  o quanto fico infeliz, parecido  a ter vazios por dentro.

     Eu pedi:

     - E se tivéssemos um gato? Um gato, nem que seja pequeno, para eu brincar.

     E a minha mãe respondeu:

     - Um gato nunca. Larga pêlo e afia as unhas nos cortinados. 

     Oh, mãe, um gato quase nem precisa de gente, vive sozinho com o seu nariz. E se fosse um peixe? Um coelho? E se fosse um crocodilo bebé?  - insisti eu.

     E ela explicou:

     - Os  peixes entristecem num aquário  e os coelhos trincam-te os dedos. Os crocodilos bebés crescem muito para serem crocodilos adultos capazes de te comerem de uma só vez. Nem pensar. Os bichos todos trincam, meu filho. São um perigo.

     Durante uma noite, a sonhar muito com estas coisas comecei a ouvir piar. Parecia-me um pintainho, talvez um filhote das galinhas da vizinha. Sempre a sonhar, fui à janela e pensei em acordar. Se acordasse pediria um pintainho à minha mãe, que não farão mal nenhum, não são violentos, são só bonitos e divertidos, parecem algodões amarelos com olhos e patas minúsculas. Ouvi mais de perto e era mesmo um canto delicado. Um som elaborado que não faz um bicho qualquer. Percebi, tinha de ser um pássaro, um canário que andava no meu sonho a voar.

     Se ;pudesse acordar, pensei, pedia à minha mãe um canário assim.

     Julgava eu que aquilo era um bicho no sonho quando, acordado já de manhã, o continuava a escutar. E para a escola o caminho todo e durante as classes, e depois ao caminho de volta, e durante o dia inteiro, ininterruptamente o pássaro cantava.

     Eu disse:

     - Mãe, acho que fiquei despreocupado da lucidez. Ouço sempre um pássaro a cantar. Talvez só me cure se aprender a voar.

     A minha mãe sorriu e eu repeti:

     - Quem se vê proibido de amar inventa outra realidade, uma realidade melhor, ainda que seja por fantasia. Vivo na fantasia, mãe.

     Depois calei-me. Sabia perfeitamente o que acontecera. Tinha um pássaro no coração. Era assim mesmo, o lugar mais decente para aprisionar um animal de estimação.


Contos de cães e maus lobos, Valter Hugo Mãe, Ed.Biblioteca Azul, 2019, págs. 63-64 

Imagem: desenho de Valter Hugo Mãe

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