Nisso houve um barulhinho que a princípio tentou ignorar, recendo romper a lânguida quietação que a envolvia. Mas o pequeno ruido - áspero, curto, insistente - acabou invadindo-lhe o bem estar. Abriu com relutância o olho preto ( o mais esperto) e logo depois o segundo,já totalmente emersa da modorra: diante dela um coelho malhado a encarava, com a orelha direita para cima e a esquerda encolhida. Seu jeito insolente e meio c6omico não a surpreendeu,pois tudo era possível sob aquela esplêndida luminosidade de abril. O visitante parou de arranhar o mosaico com as unhas, e disse depressa, mexendo os bigodes descompassadamente:
- Aposto que não se chama Alice.
- Como mé que o senhor adivinhou?
-Alice era uma bela menina. Mesmo depois de tantos anos não podia ter ficado assim.
- O senhor nãoestá sendo cortês.
-Talvez se chame Ecila...?
- Também não. Meu nome é Anif, Sr. Ohleoc - respondeu Josefina, entendendo a linguagem do interlocutor e recordando o apelido que os tios-avós lhe davam na infância.
- O coelho olhou-a com menos dureza e suas narinas vibraram mais rapidamente ainda:
- Vejo que me conhece. Com certeza já fomos apresentados, só que não lembro onde nem quando. Essa desmemória... Em todo o caso seu nome não me desagrada. Vamos?
Sem hesitar, Josefina pulou da rede, atrás do coelho, que passou por entre as grades estreitas da varanda e, saindo da cobertura, foi saltando de andar em andar até o térreo. Apesar de haver engordado meio quilo nas últimas semanas e de estar destreinada em matéria de ginástica ioga, não teve dificuldade em segui-lo: chegou à rua apenas um pouco ofegante e com o joelho mais pontiagudo ligeiramente ferido.
- Ainda bem que deixei de fumar em dezembro - pensou com alívio - senão teria sido pior.
Tirou do bolso do blue-jeans um band-aid ( mulher cautelosa, sempre carrega consigo alguns elementos de primeiros socorros), mas não o utilizou. O coelho já ia longe e de vez em quando olhava para trás, chamdo-a, impaciente, com um movimento de rabo ou dos bigodes. Josefna apressou-se, para não aborrecer seu guia: estava curiosa e não queria malograr o passeio.
Ao chegar ao Rio da Prata, o coelho interrogou-a com altivez:
- Aprendeu a nadar quando era criança? Porque depois ninguém aprende...
- Não, senhor. Além do mais não gosto destas águas escuras, cheias de barro. Depois este é um dos Rios Sucessivos e não tenho a menor intnção de imiscuir-me em assuntos internacionais.
- Concordo plenamente com suas opiniões. Vejo que poderemos entender-nos.
- É só o que desejo, Ohleoc. Posso suprimir o senhor, que é tão convencional?
- Como quiser. Detesto perguntas formalistas que pretendem ser informais. Tomemos o submarino.
Vexada, Josefina entrou na pequena canoa atracada junto ao cais. O coelho deu corda numa manivela da popa e a embarcação partiu. Josefina se acomodou na mesma sensação voluptuosa que a acalentara na rede. Escurecia, e o sereno era fresco. Apesar de ríspido, Ohleoc tinha gestos cavalheirescos e estendeu-lhe um chale de piel de conejo; aconchegada, cochilou.
O mesmo barulhinho seco de antes a despertou: coelho a chamava novamente, um pouco irritado. Tinham chegado, ao amanhecer, a uma praia estranha, em que havia mais plantas ( verdíssimas) que pedras e aria. Galos, galinhas-d'angola, coelhos de todos os tamanhos, avestruzes e tartarugas corriam de um lado para o outro - sendo que estas eram as mais velozes do grupo; pombas e faisões sobrevoavam a região, dirigidos pela Rainha das Abelhas,solitária e poderosa. O conjunto tinha a graça irresistível de um desenho animado. josefina saiu correndo da canoa e, sem poder nem querer conter-se, começou a pular carniça sobre os animais, que não pareceram notar sua presença. Pela primeira ve desde que se encontraram, Ohleoc dirigiu-se a ela de maneira menos impessoal:
Vejo que está gostando, Anif. Melhor assim, pois caso contrário teríamos sido obrigados a afogá-la
Indiferente à possível ameaça, Josefina perguntou com entusiasmo:
- Que festa maravilhosa é esta, amigo?
- Será que ainda não percebeu que estamos preparando a Aocsap?
Foi então que Josefina descobriu por pue todos aqueles bichos eram tão belos e vivazes, tão coloridos: fabricavam ovos de Páscoa, de porcelana, de madrepérola, de açucar-cande, de chocolate, de ovo mesmo. um turquesa, sobretudo, fascinou-a. Pensou com inveja:
- Que pena minhas filhas já serem tão grandes, senão eu aproveitava para botar um menino agora mesmo. Seria o mais lindo de todos.
Uma tartaruga acabou reparando nela e se aproximou, solícita:
- Dói um pouco, mas, se quiser, posso ajudá-la: conheço todos os segredos.
- O sol ia desabrochando, porém, cada vez mais intensamente. Quando o galo maior cantou, todos os bichos se esconderam, debaixo, atrás, dentro ou acima das pedras: o céu e a praia ficaram vazios. O mesmo barulhinho conhecido indicou a Josefina que era hora de voltar. Exausta, mas feliz, regressou a bordo... à rede.
A seu lado, no chão da varanda, uma bolinha refulgia, profundamente azul. Com o maior cuidado Josefina pegou o ovinho turquesa e enfiou na corrente Gucci que há três anos, dia e noite, usa pendurada no pescoço.
Em: Um Buquê de Alcachofras, Maria Julieta Drummond de Andrade
Liv. José Olympio Editora , 1980, págs. 112-114.
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