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Querido Homem Aranha, Mariana Salomão Carrara

      Querido Homem-aranha, 


meu nome é Maria Carmem (Carmem com m) e eu não tenho superpoderes. Eu tenho um pouco de pena de você porque seu tio morreu por culpa sua e odeio quando uma coisa ruim é culpa minha, tipo quando meus pais não puderam ir na festa de ano novo porque eu tomei chuva e tive pneumonia. Acho que se um bicho fosse me morder pra eu virar super-heroína eu nunca ia escolher aranha. A aranha tem muitas pernas e é sozinha demais lá em cima na teia tanto tempo esperando alguém aparecer. E quando um inseto finalmente gruda ali, ela passa uns minutos olhando, imaginando como seria viver com ele. Daí ela mata o visitante. Uma vez numa viagem eu vi uma aranha comendo um vaga-lume que não parava de piscar. Ele já devia estar sem as asas e sem as perninhas e mesmo assim ficava acendendo no canto do teto. Achei a aranha tão cruel, espero que você mate os seus vilões muito mais depressa. 

     Será que o vaga-lume pisca de dor? Se eu pudesse brilhar de dor eu seria um escândalo.

     Você corre tão rápido, na aula de educação física a professora disse que eu não tenho fôlego. Sabe, Homem aranha, se um dia você precisasse descer de um edifício pendurado na teia comigo nos braços acho que você não ia aguentar, ou a teia ia arrebentar, porque eu tenho muito tamanho, meus colegas me mandam tirar a cabeça da frente da lousa.

     Acho que eu escolheria uma águia, em vez de aranha, assim não precisaria escalar os prédios, eu subiria voando e enxergaria os criminosos lá de cima com os meus olhos incríveis, depois eu rasgaria os inimigos com o meu bico. Mas talvez, se uma águia me mordesse, como eu tenho muito tamanho, ela não desse conta de me transformar em Mulher-águia, e eu viraria a Menina-pomba, e os pais iam afastar as crianças que tentassem me dar milho, eles iam dizer que eu passo doença. Talvez seja melhor eu escolher coruja, assim minha mãe ia me deixar sair à noite.

     Se eu tivesse os seus poderes, eu jogaria teia de aranha no cabelo dos meus colegas. Apesar que na verdade eles ficariam apertando o botão do meu pulso e forçando meu braço pra trás pra jogar muita teia no meu olho e na minha boca. Eu queria saber como você faz pra perceber quem são os vilões, porque a aranha não sabe, ela mata até mesmo o vaga-lume que pisca de dor e tem uma luz tão bonita, e como é que você descobre que uma pessoa precisa ser salva no outro bairro, queria saber se você tem contato com deus. Porque mesmo deus, que às vezes nem existe, ele não sabe muito bem quando as pessoas estão caindo ou sequestradas, ou talvez ele só consiga prestar atenção em um bairro de cada vez. Talvez deus, se ele existir, devesse enviar outros insetos mágicos que iam morder outras pessoas e fazer mais heróis, assim nenhum bairro ficava desprotegido.

     Se eu tivesse os seus poderes, no recreio em vez de ficar sentada tentando arrancar as pedrinhas do chão do pátio, eu ia fazer várias teias de aranha no teto, ia tentar jogar minha teia cada vez mais alto, também no teto da capela da escola e até no menino jesus, e eu faria teias até mesmo em cima das aranhas de verdade pra elas verem que o meu material é melhor, a escola ia ficar inteira coberta com as minhas teias, o sino nem ia mais conseguir bater e a gente ia ficar pra sempre na aula de redação, que é a minha preferida. 

     Sabe, Homem-aranha,  eu preferia fazer a carta para o Super-homem, porque ele é imortal e eu queria perguntar pra ele como é isso de saber que nunca vai morrer, eu preferia esse poder, de nunca morrer, além de voar, mas a professora me sorteou você, e tudo bem, as teias são ótimas. 

     Eu e você podíamos chamar muitos vaga-lumes pra grudarem numa teia gigante e à noite a gente ficava olhando o pisca-pisca que ia parecer um céu cheio de estrelas muito, muito perto, »«mas sem nenhuma aranha comendo a luz, não teria nenhuma dor, nenhum inimigo, e então a gente olharia as luzes a noite inteira, as estrelinhas-lume embaçando no olho, até parecer que estávamos voando muito alto, mais ou menos como o Super-homem, e pensaríamos que somos imortais, que nosso coração não pode mais parar de repente, e então eu teria a minha resposta mesmo tendo feito esta carta pra você, e não pro Super-homem, porque é assim que ele se sente, agora eu sei, todo eterno.

Maria Carmem Rosário 6 ano A

Do livro: Se Deus Me Chamar Eu Não Vou

Mariana Salomão Carrara 

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