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Eu, Orhan Pamuk


     Quando eu tinha quatro anos, meu irmão, na época com seis, entrou para a escola, e ao longo dos dois anos seguintes o companheirismo intenso e ambivalente que se desenvolvera entre nós começou a perder a força. Eu estava livre da nossa rivalidade e da opressão de sua força superior; agora que eu tinha o Edifício Pamuk e a atenção exclusiva da minha mãe o dia inteiro, tornei-me mais feliz e descobri as alegrias da solidão.
     Enquanto o meu irmão ficava na escola, eu pegava suas revistas em quadrinhos de aventura e, guiado pela lembrança do que ele lera para mim, tornava a "lê-las", dessa vez sozinho. Numa tarde quente e agradável, eu tinha sido posto na cama para minha sesta diária mas, excitado demais para dormir, abri um número de Tom Mix e logo senti a coisa que minha mãe chamava de meu "bibi" ficando dura. Estava olhando para o desenho de um pele-vermelha seminu com um cordão finíssimo em torno da cintura e, cobrindo sua virilha como uma bandeira, um pedaço de pano branco reto com um círculo desenhado no meio.
     Noutra tarde, deitado de pijama debaixo das cobertas e conversando com um urso que eu possuía havia algum tempo, senti de novo o mesmo endurecimento. Curiosamente, esse acontecimento estranho e mágico - que, embora agradável, eu me sentia compelido a esconder - ocorreu logo depois que eu disse ao urso, "Vou devorar você'! Mas não se devia a alguma ligação muito forte que houvesse entre mim e o urso: eu era capaz de produzir o mesmo efeito quase sempre que eu queria, apenas repetindo a mesma ameaça. Acontece que essas eram as palavras que me causava a impressão mais forte nas histórias que a minha mãe contava - "Vou devorar você"! - e que, para mim, significavam não apenas que outro ia ser literalmente comido, como ainda aniquilado. Como eu iria descobrir mais tarde, os daevas da literatura clássica persa - esses monstros de cauda apavorante que eram aparentados aos demônios e jinns e eram amiúde pintados pelos miniaturistas - transformavam-se em gigantes quando conseguiam se infiltrar nas histórias contadas no turco de Istambul. Minha imagem de um gigante veio da capa de uma versão condensada da epopeia clássica turca Dede Korkut. Como o pele-vermelha da revista, esse gigante em particular estava semidespido, e aos meus olhos dava a impressão de comandar o mundo todo.
     Meu tio, que por volta dessa época tinha comprado um pequeno projetor de cinema, ia nos feriados à loja de fotografia local, onde alugava filmes de curta-metragem: Charlie Chaplin, Walt Disney, o Gordo e o Magro. Depois de remover cerimoniosamente os retratos de meus avós, ele projetava os filmes na parede branca acima da lareira. Na coleção permanente de filmes do meu tio havia um desenho de Disney que ele só exibiu duas vezes; e a curta carreira do filme devia-se a mim. O filme mostrava um gigante primitivo, gordo e retardado que era do tamanho de um edifício; quando ele perseguia Mickey até o fundo de um poço, arrancava o poço da terra com um único tapa, e bebia seu conteúdo como se fosse um copo; assim que Mickey caía em sua boca, eu chorava com toda a força. Existe um quadro de Goya no Museu do Prado, chamado Saturno devorando seus filhos, em que um gigante enfia na boca um homenzinho que colheu no chão, que até hoje me aterroriza.
     Numa tarde, enquanto eu ameaçava meu urso da maneira habitual mas ao mesmo tempo o alimentava com uma estranha compaixão, a porta se abriu e meu pai me pegou com as cuecas arriadas. Ele fechou a porta um pouquinho mais devagar do que abrira, e ( até mesmo eu que era cpaz de o perceber) com certo respeito. Até então, sempre que ele vinha em casa para o almoço e um rápido descanso, sempre tivera o costume de vir me dar um beijo antes de voltar ao trabalho. Fiquei com medo de ter feito alguma coisa errada ou, pior ainda, de ter cometido um erro por prazer: foi nesse momento que o próprio conceito de prazer se envenenou.
     Essa sensação se confirmou pouco depois de um dos desentendimentos mais prolongados dos meus pais, quando a minha mãe saiu de casa e a babá que viera tomar conta de nós dois estava me dando banho. Numa voz desprovida de compaixão, ela brigou comigo porque eu era "igual a um cachorro".
     Eu não controlava as reações do meu corpo; e para piorar as coisas, foram necessários seis ou sete anos, depois que eu entrei depois que eu entrei para uma escola secundária masculina, até eu descobrir que elas não aconteciam só comigo.
     Durante longos anos em que eu me considerava o único a possuir aquele talento misterioso e depravado, era normal mantê-lo oculto no meu outro mundo, onde tanto os prazeres quanto o mal oculto tinham livre curso. Era o mundo em que eu podia entrar quando, por puro tédio, fingia ser outra pessoa e estar em outro lugar. Era muito fácil fugir para esse outro mundo que eu escondia de todos. Na sala de estar da minha avó, fazia de conta que estava a bordo de um submarino. Tinha acabado de ir ao cinema pela primeira vez, assistir à adaptação das Vinte mil léguas submarinas de Júlio Verne, e enquanto eu acompanhava a fita no empoeirado Cine Pace, o que mais me deu medo foram os silêncios do filme. Em seus movimentos de câmera frenéticos e claustrofóbicos, em seus sombrios interiores submarinos em preto e branco não tinha como deixar de reconhecer alguma coisa de nossa casa. Eu era pequeno demais para ler as legendas, mas a minha imaginação preenchia as lacunas. ( Mesmo mais tarde, quando me vi capaz de ler um livro perfeitamente bem, o que importava mais não era o "entender" o que o texto dizia, mas suplementar seu significado com as fantasias certas.)


     "Não balance as pernas desse jeito, está me deixando tonta", costumava dizer minha avó quando me via obviamente imerso num dos meus devaneios cuidadosamente encenados.
     Eu parava de balançar as pernas, mas nos meus devaneios um avião continuava a atravessar as nuvens de fumaça que se erguiam dos cigarros Gelincik que ela levava nos lábios, e dali a pouco eu entrava na floresta habitada pelos muitos coelhos, folhas, serpentes e leões que antes identificara entre as formas geométricas dos tapetes. Envolvendo-me numa aventura de uma das minhas revistas em quadrinhos, montava num cavalo, ateava um incêndio, matava algumas pessoas. Com um ouvido sempre alerta aos sons exteriores, ouvia a porta do elevador bater e, antes de voltar em pensamento para os pele-vermelhas seminus, notava que Ismail, o zelador, subira até o nosso andar. Eu gostava de incendiar casas, de fazer chover balas sobre casas em chamas, de escapar de casas incendiadas através de túneis que cavara com as próprias mãos, e de matar lentamente as moscas que eu tinha capturado entre a vidraça e as cortinas de tule, que fediam a cigarro; quando caíam na tábua perfurada que cobria o radiador, as moscas eram gângsteres que finalmente pagavam por seus crimes. Até os 45 anos tive o hábito, sempre que ingressava naquele doce nevoeiro entre o sono e a vigília, de me consolar imaginando que matava gente. E gostaria de pedir desculpas aos meus parentes mais próximos - alguns deles, como o meu irmão, de fato muito próximos -, bem como aos muitos políticos, luminares das letras, comerciantes e personagens majoritariamente imaginários que figuravam entre as minhas vítimas. Outro crime frequente: eu me apegava a um gato que tratava com muito carinho, só para atingi-lo cruelmente num momento de desespero, do qual emergia com ataque de riso que me deixava tão envergonhado que eu passava a cobrir o pobre gato de um amor ainda mais intenso do que antes. Uma tarde, 25 anos depois, quando cumpria o meu serviço militar, ao ver toda uma companhia reunida na cantina depois do almoço para conversar e fumar, passei em revista aqueles 750 soldados quase idênticos e imaginei que suas cabeças eram separadas de seus corpos. Enquanto eu contemplava os seus esôfagos ensanguentados em meio à fumaça de cigarro que banhava a cantina cavernosa num suave nevoeiro azul-transparente, um dos meus amigos soldados disse, "Pare de balançar as pernas, rapaz. Estou cansado e não aguento mais".

     A única pessoa que parecia perceber a existência do meu mundo secreto de fantasia era o meu pai.
     Eu pensava no meu urso - cujo único olho eu tinha arrancado num momento de exaltação raivosa e que emagrecia sempre à medida que eu arrancava mais e mais o recheio do seu peito - ou então pensava no jogador de futebol do tamanho de um dedo que chutava quando se apertava um botão na sua cabeça; era meu terceiro jogador - eu quebrara os dois primeiros em ímpetos de excitação -. e agora quebrava também o novo, e me perguntava se o meu brinquedo ferido poderia estar morrendo em seu esconderijo. Ou então eu me perdia em fantasias assustadoras sobre as martas que a nossa empregada Esma Hanim alegava ter visto no telhado da casa vizinha - usando a mesma voz que empregava para falar com Deus -, quando de repente ouvia meu pai dizer: "O que está acontecendo dentro da sua cabeça? Se você me contar, eu lhe dou 25 kurus".
     Nunca sabendo ao certo se devia contar-lhe toda a verdade, modificá-la um pouco ou contar uma mentira descarada, eu ficava em silêncio; depois de algum tempo, ele sorria e dizia: "Agora é tarde demais - você devia ter me contado na hora".
     Será que o meu pai também tinha passado muito tempo num outro mundo? Anos transcorreriam até eu descobrir que o meu estranho passatempo era comumente conhecido como sonhar acordado. De odo que a pergunta do meu pai sempre me induzia a pânico; ansioso, como sempre, de evitar pensamentos perturbadores, eu me esquivava de sua pergunta e depois a afastava do meu espírito.
     Manter o segundo mundo em segredo tornava mais fácil para mim o trânsito de um para o outro. Quando eu me sentava em frente à minha avó e um raio de luz atravessava as suas cortinas - como os holofotes dos navios que cruzam o Bósforo à noite -, se eu olhasse diretamente pare ele e piscasse os olhos, era capaz de induzir-me a ver uma frota de naves espaciais vermelhas flutuando à minha frente. Despois disso, passava a poder convocar a mesma armada toda vez que quisesse, voltando em seguida para o mundo real como alguém que simplesmente saísse de um quarto e apagasse a luz (como, ao linfo de minha infância, sempre me lembravam de fazer no mundo real).
     Se eu sonhava em trocar de lugar com o outro Orhan da outra casa, se eu ansiava por uma vida para além das salas, corredores e tapetes do museu ( como eu odiava aqueles tapetes!) e para além da companhia daqueles homens positivistas que adoravam matemática e palavras cruzadas, se eu me sentia confinado naquela casa sombria e abafada que rejeitava ( embora a minha família mais tarde viesse a negá-lo) qualquer sugestão de espiritualidade, amor, arte, literatura ou mitologia, se de tempos em tempos eu me refugiava num outro mundo, não era porque eu fosse infeliz. Longe disso, especialmente naquele período entre as idades de quatro e seis anos, quando, como um menino esperto e bem-comportado, eu sentia o amor de quase todo mundo que encontrava, infindavelmente beijado e passado de colo em colo e cumulado de guloseimas a que nenhum bom menino poderia resistir: a maçã do quitandeiro ( "Não coma antes de lavar", dizia minha mãe), as passas do homem no café ("Guarde para depois do almoço"), os doces que a minha tia me dava quando a encontrávamos na rua ( "Diga, obrigado").
     Se eu tinha algum motivo de queixa, era a minha incapacidade de enxergar através das paredes. Quando eu olhava pela janela, detestava não ver o prédio ao nosso lado ou a rua abaixo de nós, e só uma tira muito estreita de céu. No açougue de cheiro forte de outro lado da rua ( eu sempre esquecia do cheiro, e tornava a me lembrar no momento em que punha os pés na rua fresca), ficava acabrunhado por ser baixo demais para ver o açougueiro pegar uma de suas facas ( cada uma delas do tamanho de minhas pernas) e cortar a carne em cima do cepo de madeira; detestava não ser capaz de inspecionar os balcões, os tampos de mesas ou o interior dos congeladores de sorveteria. Quando havia algum pequeno acidente de tráfego na rua, atraindo policiais a cavalo, bastava um adulto se postar à minha frente que eu perdia metade dos acontecimentos. Nas partidas de futebol a que meu pai me levava desde muito pequeno, toda vez que o nosso time se via ameaçado, todas as fileiras à nossa frente se punham de pé, ocluindo minha visão dos lances decisivos. Mas a verdade é que meus olhos nunca acompanhavam mesmo a bola; estavam sempre fixos nos pães de queijo, nas torradas com queijo derretido, nos chocolates envoltos em papel de alumínio que o meu pai comprava para o meu irmão e para mim. O pior de tudo era a saída do estádio, ver-me aprisionado em meio às pernas dos homens que disputavam o espaço em busca das saídas, uma floresta escura e asfixiante de calças amarrotadas e sapatos sujos de lama. Afora as lindas mulheres como a minha mãe, não posso dizer que gostasse muito dos adultos de Istambul, que no geral achava feios, peludos e grosseiros. Eram desajeitados demais, pesados demais, realistas demais. Pode ser que no passado tivessem tido algum acontecimento de um outro mundo oculto, mas pareciam ter perdido sua capacidade de admirar-se e esquecido de como se sonha, uma incapacidade que eu considerava condizente com os incômodos tufos de pelos que brotavam dos nós dos seus dedos e nos seus pescoços, dos seus narizes e orelhas. E assim, embora eu apreciasse os seus sorrisos gentis e - mais ainda - os presentes que me davam, os seus beijos incessantes equivaliam a me submeter às abrasões das suas barbas e costeletas, ao mau cheiro de seus perfumes e ao seu hálito de fumantes. Eu considerava os homens parte de alguma raça inferior e mais vulgar, e dava graças por a maioria deles pertencer às ruas fora de minha casa.


Em: Istambul, memória e cidade, Orham Pramuk Ed. Cia das Letras, 2007, págs. 28-35

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