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Encanto, Marcelo Valença


     Umas duas noites atrás choveu. Ainda tem sereno no ar quando o sol começa a nascer e o barro da estrada ainda está razoavelmente assentado. Agora bem cedo seu Ulisses está com as vacas na beira da estrada e os três me parecem contentes. Quando passo ele me acena breve com a cabeça, deixando o sorriso suave durar um pouco mais.
     Já a professora Irene me encontrou mais à frente no caminho da escola, como sempre. Ela sorria também e parecia que continuava o sorriso de seu Ulisses. Como se sorrissem no gerúndio.
       -Tu pensou na pergunta do consultor?
     Ela me perguntou assim bem devagar. E ainda ficou parada como um mandacaru para esperar resposta.
     Ora, se pensei! Claro que pensei. Estou pensando ainda agora mesmo e já pensei tanto pensamento que você nem imagina. A Irene é bem intencionada, coitada. Gostou da conversa do consultor e quer sair fazendo da escola uma revolução. Mas não é ela quem tem que responder na secretaria. Quem responde por aquele bando de criança sou eu.
     E mais, esse consultor é outro animado demais com a vida. Deve acordar falando e falar dormindo. Tem até umas ideias, é verdade, mas parece que lhe falta juízo. É gente daquele tipo que conta o dia no minuto e diz coisas bonitas como ‘impactar a vida das famílias’ ou ‘prover oportunidades para as crianças’. Mas sou eu quem vai dia sim dia não lá na secretaria pra ver se chegou papel higiênico ou pra ver se tem pipa essa semana. E a Irene tinhosa continua lá me encarando e sorrindo ali.
     -Ele queria saber do sonho da gente…
     Ela fala manso, como se cheia de cuidados. Eu sei muito bem o que ele perguntou. Essa Irene já me aporrinha todo dia na escola e agora deu para ficar de inquérito comigo na estrada. A gente aqui já se demorou demais nessa conversa. Já tem criança passando por nós. Passa uma aqui, outra ali, e a Irene só sorrindo. Teve um do terceiro ano, de pés e dentes amarelos, que parou do lado de Irene e ficou me sorrindo também.
     É o sonho que ele quer, o sonho da gente quando a gente tinha a idade desse aí. Esse, aliás, tem cara de sonhador mesmo, magrelo sorridente que só tem tamanho. Quem sonha muito fica assim com essa cara de paisagem, vendo vaquinha pastar. Como é mesmo o nome desse menino?
     -Menino como é teu nome mesmo?
     -É Renê, dona Emília.
     -Apois me diga uma coisa, Renê, tu por acaso sonha com quê?
     -É como, dona senhora?
     -Sonho, Renê, sonho. Ideia das coisas, coisa que tu queres fazer, tem vontade, esperança, o diabo.
     -Ô dona Emília, isso de sonho do diabo eu não tenho não!
    E ainda me sai sorrindo mais amarelo do que chegou. E a Irene lá, achando graça. Vai dizer que agora a gente ganha a vida no sonho, é isso mesmo? Ainda bem que aquele consultor não está aqui. Ia ficar todo-todo ressaltando o ‘potencial inovador’ do Renê. Ia dizer para a gente buscar ‘os saberes do aluno’ e o escambau. Mas eu bem sei que esse Renê aí já está andando há horas. Sei que saiu com o sol de casa e descalço como a maioria. Vai ver ele aproveita que já se demora na estrada mesmo e aproveita para sonhar por aqui mesmo. Deve dar uns trinta sonhos na ida e outros trinta na volta. Vem sonhando com as vaquinhas do seu Ulisses e volta sonhando malhado. Vem pisando no barro e volta sonhando com a terrina.
     Eu nessa idade tinha mais era que dar conta das minhas irmãs. A gente vinha todas as cinco nessa mesma estrada, para essa mesma escola. Naquele tempo era bem menor e não tinha isso de consultor. De resto era a mesma coisa. O mesmo barro e a mesma desesperança. Meu sonho naquele tempo era ter dinheiro pra comprar um fogão lá pra casa. Queria ver se mainha ia acertar a tapioca num fogão à gás. Eu era mesmo uma tonta. Onde que eu ia comprar gás? E com que dinheiro?
     -Irene, meu sonho é um fogão. Um fogão. Tá bom para você? É uma miséria de um fogão à gás. E sem bujão.
     -Ah, dona Emília, só a senhora mesmo!
     Agora ela ri alto, como se eu tivesse dito a coisa mais hilária do mundo. Que que tem meu fogão? E agora eu estou de graça que nem o diabo do Renê? Do quê que esses dois tanto acham graça da vida? Se é pra ficar de engraçadinha, vou é contar esse sonho pro consultor. Vai ver ele desatina a rir também e me deixa em paz. Pelo menos agora a Irene desempaca e a gente segue o rumo.
     Quando eu era moça não tinha esse muro na escola ainda, esse que a gente passou agora. Eram só as salas e o começo desse pátio no meio. Era pouca gente, quase tudo menina, quase todas filhas de gente da roça mesmo. Também só a gente já chegava em cinco, os demais também vinham em bandos. Tinha as quatro mariquinhas, as três joelmas, as duas leonoras e as quatro josetes. Tudo chamada pelo nome da mãe ou da mais velha. Com a gente acabou ficando diferente. A gente era era as candinhas, do nome da menorzinha. Ela nem tinha tamanho de escola ainda, mas vinha no pacote e ninguém ligava. Em casa, eu botava ela do meu lado quando ia passar a lição e ela ficava lá espiando, perguntando, assuntando. Acabou que aprendeu a ler mais cedo que todo mundo e com cinco anos já sabia fazer conta de vezes. Ah, mas pras minhas candinhas eu sonhava. Aí sim eu sonhava de verdade. Sonhava elas doutoras, professoras, advogadas. Achava que elas iam poder sorrir mais quando fossem grandes, se fossem gente estudada e inteligente.
     Agora já é quase almoço do primeiro e do segundo ano. A Irene passou aqui para me chamar, toda cheia de dentes:
      -Bora dona Emília. Bora pro fogão que ainda tem gás.
     A Irene continua achando graça na coisa do sonho do consultor. Ela é outra coitada que estudou aqui quando era menina. Fez aqui o primeiro grau, já depois da minha época. Depois foi com o irmão e a mãe morar na cidade e foi por lá que entrou no magistério. Só depois de velha que foi fazer especialização e voltou cheia de sonho e ideia. Me pergunto como é que pode uma pessoa como Irene, que passou por tudo o que ela passou, que penou o tanto que ela penou na vida, me aparecer com essas ideias de sonhar a escola dos sonhos. Bem vi ela lá semana passada, chorando quietinha e sorrindo enquanto o consultor falava o que ele tinha ouvido das crianças. Criança não tem juízo, não tem que dar ideia. Aqui o que a gente mais tem é um bando de renês magrelos amarelos com as cabecinhas cheios de vontades, mudanças, inovações.
     No meu tempo a gente tinha era que ir atrás das coisas. Não tinha pipa, era a gente mesmo que ia buscar água no açude. A turma ia em sistema de rodízio já que quem ia pro açude acabava perdendo o dia de aula. Teve um dia que fui eu e a Candinha no açude. Eu não queria que ela fosse pra não me atrasar. Minha professora Anastácia foi quem me obrigou a levá-la comigo. Não deu outra. Candinha foi no passo dela, vendo flor, puxando conversa, perseguindo passarinho. Acabou que a gente passou e muito da hora da escola. Quando finalmente chegamos de volta, fui me desculpar com dona Anastácia. Achei que ela ia me bater, mas ao invés disso ela me perguntou se eu tinha reparado no quê Candinha se distraiu. Disse que sim, passarinho, mariposa, pedra, flor… Depois me perguntou se Candinha estava sorrindo no caminho. Disse que sim novamente, e ela só sorriu de volta.
     Foi por causa de gente como dona Anastácia que eu quis ser professora. Por causa dela e das minhas irmãs, Candinha principalmente. O consultor falou que quando ele vê as crianças na nossa escola ele lembra dele mesmo. Aquele misto de fome e vontade. Aquela cara de quem está com as tripas grossas comendo as finas, mas fica com a cabeça trabalhando, fazendo perguntas, formulando hipóteses. Eu também lembro de mim mesma nessas crianças, claro. E lembro ainda das minhas candinhas todas. Lembro de dona Anastácia, do seu jeito teso e educado de falar com a gente. Ela era assim sempre, suave e resoluta.
     Já vêm o terceiro e o quarto ano pro almoço. No fim da fila do terceiro ano vem Renê e junto dele o consultor, já rindo. Do quê que eles já riem, meu deus? Esse jovem tem um jeito diferente, e os estudantes parecem gostar dele. Sei lá, devem se identificar com ele de algum forma. Ele conta uma histórias, faz umas alegorias, umas macaquices. As crianças acabam que entram na dele. Começam a inventar também e daqui a pouco já virou um teatro improvisado, sem roteiro nem sentido. Ele me lembra o seu Ulisses de antigamente.
     A gente saia da escola e ia direto para a lavoura encontrar mainha e trabalhar. Às vezes a gente encontrava seu Ulisses no caminho e ele nos dava carona no carro de boi dele. Apesar de mais velho que a gente, Ulisses era novo ainda e tinha uma habilidade que eu achava incrível: tocava o carro sem açoitar os bois. Ele cantava junto com o assobio das rodas e cantando guiava o conjunto. Diziam que era pela música que os bois sabiam o que fazer. Às vezes até cantavam junto com ele. Eu até lembro um pouco do canto. Coisa de gente doida isso de cantar com boi, mas eu gostava.
-é o canto da água, meu senhor…
     Bom, chega de pensar em nada. Preciso botar a macaxeira na panela de novo, está esfriando e vai ficar dura. Quando eu abrir a panela vai subir aquele cheiro de coentro e as crianças vão vir babando, certeza.
-é o sonho da mata, iaiá…
     Espera, vou colocar um pouco mais de água aqui para amolecer. Candinha gostava da macaxeira bem mole, quase uma papa. Já Irene falou que não come mais macaxeira para não lembrar da penúria.
-é o canto da água, meu senhor…
     Pronto, pouco mais de sal, deixa ferver. Mas que bobagem dela. Dona Anastácia comia macaxeira, seu Ulisses come até hoje, mesmo quase sem dentes. Tenho certeza que até esse consultor come macaxeira.
 -é o sonho da mata, iaiá.
     Não reparei se o Renê pegou comida, devo ter me distraído. Ou o consultor, cadê ele? Ah, ali ainda com o Renê olhando para mim. Espera, por que me olham assim amarelos? E esse povo todo com cara de tonto? Por que essa gente toda me olha e me ri? Que falta de respeito mais descabida é essa? E Irene, cadê Irene?
     -Que foi, Irene, que que esse povo tá olhando pra mim desse jeito?
     -Iaiá Emília, você sonha em melodia!

Imagem: Marcelo Valença
 
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