Já a professora Irene me encontrou mais à frente no
caminho da escola, como sempre. Ela sorria também e parecia que continuava o
sorriso de seu Ulisses. Como se sorrissem no gerúndio.
-Tu pensou na
pergunta do consultor?
Ela me perguntou assim bem
devagar. E ainda ficou parada como um mandacaru para esperar resposta.
Ora, se pensei! Claro que
pensei. Estou pensando ainda agora mesmo e já pensei tanto pensamento que você
nem imagina. A Irene é bem intencionada, coitada. Gostou da conversa do consultor
e quer sair fazendo da escola uma revolução. Mas não é ela quem tem que
responder na secretaria. Quem responde por aquele bando de criança sou eu.
E mais, esse consultor é
outro animado demais com a vida. Deve acordar falando e falar dormindo. Tem até
umas ideias, é verdade, mas parece que lhe falta juízo. É gente daquele tipo
que conta o dia no minuto e diz coisas bonitas como ‘impactar a vida das
famílias’ ou ‘prover oportunidades para as crianças’. Mas sou eu quem vai dia
sim dia não lá na secretaria pra ver se chegou papel higiênico ou pra ver se
tem pipa essa semana. E a Irene tinhosa continua lá me encarando e sorrindo
ali.
-Ele queria saber do sonho
da gente…
Ela fala manso, como se
cheia de cuidados. Eu sei muito bem o que ele perguntou. Essa Irene já me
aporrinha todo dia na escola e agora deu para ficar de inquérito comigo na
estrada. A gente aqui já se demorou demais nessa conversa. Já tem criança
passando por nós. Passa uma aqui, outra ali, e a Irene só sorrindo. Teve um do
terceiro ano, de pés e dentes amarelos, que parou do lado de Irene e ficou me
sorrindo também.
É o sonho que ele quer, o
sonho da gente quando a gente tinha a idade desse aí. Esse, aliás, tem cara de
sonhador mesmo, magrelo sorridente que só tem tamanho. Quem sonha muito fica
assim com essa cara de paisagem, vendo vaquinha pastar. Como é mesmo o nome
desse menino?
-Menino como é teu nome
mesmo?
-É Renê, dona Emília.
-Apois me diga uma coisa,
Renê, tu por acaso sonha com quê?
-É como, dona senhora?
-Sonho, Renê, sonho. Ideia
das coisas, coisa que tu queres fazer, tem vontade, esperança, o diabo.
-Ô dona Emília, isso de
sonho do diabo eu não tenho não!
E ainda me sai sorrindo
mais amarelo do que chegou. E a Irene lá, achando graça. Vai dizer que agora a
gente ganha a vida no sonho, é isso mesmo? Ainda bem que aquele consultor não
está aqui. Ia ficar todo-todo ressaltando o ‘potencial inovador’ do Renê. Ia
dizer para a gente buscar ‘os saberes do aluno’ e o escambau. Mas eu bem sei
que esse Renê aí já está andando há horas. Sei que saiu com o sol de casa e
descalço como a maioria. Vai ver ele aproveita que já se demora na estrada
mesmo e aproveita para sonhar por aqui mesmo. Deve dar uns trinta sonhos na ida
e outros trinta na volta. Vem sonhando com as vaquinhas do seu Ulisses e volta
sonhando malhado. Vem pisando no barro e volta sonhando com a terrina.
Eu nessa idade tinha mais
era que dar conta das minhas irmãs. A gente vinha todas as cinco nessa mesma
estrada, para essa mesma escola. Naquele tempo era bem menor e não tinha isso
de consultor. De resto era a mesma coisa. O mesmo barro e a mesma desesperança.
Meu sonho naquele tempo era ter dinheiro pra comprar um fogão lá pra casa.
Queria ver se mainha ia acertar a tapioca num fogão à gás. Eu era mesmo uma
tonta. Onde que eu ia comprar gás? E com que dinheiro?
-Irene, meu sonho é um
fogão. Um fogão. Tá bom para você? É uma miséria de um fogão à gás. E sem
bujão.
-Ah, dona Emília, só a
senhora mesmo!
Agora ela ri alto, como se
eu tivesse dito a coisa mais hilária do mundo. Que que tem meu fogão? E agora
eu estou de graça que nem o diabo do Renê? Do quê que esses dois tanto acham
graça da vida? Se é pra ficar de engraçadinha, vou é contar esse sonho pro consultor.
Vai ver ele desatina a rir também e me deixa em paz. Pelo menos agora a Irene
desempaca e a gente segue o rumo.
Quando eu era moça não
tinha esse muro na escola ainda, esse que a gente passou agora. Eram só as
salas e o começo desse pátio no meio. Era pouca gente, quase tudo menina, quase
todas filhas de gente da roça mesmo. Também só a gente já chegava em cinco, os
demais também vinham em bandos. Tinha as quatro mariquinhas, as três joelmas,
as duas leonoras e as quatro josetes. Tudo chamada pelo nome da mãe ou da mais
velha. Com a gente acabou ficando diferente. A gente era era as candinhas, do
nome da menorzinha. Ela nem tinha tamanho de escola ainda, mas vinha no pacote
e ninguém ligava. Em casa, eu botava ela do meu lado quando ia passar a lição e
ela ficava lá espiando, perguntando, assuntando. Acabou que aprendeu a ler mais
cedo que todo mundo e com cinco anos já sabia fazer conta de vezes. Ah, mas
pras minhas candinhas eu sonhava. Aí sim eu sonhava de verdade. Sonhava elas
doutoras, professoras, advogadas. Achava que elas iam poder sorrir mais quando
fossem grandes, se fossem gente estudada e inteligente.
Agora já é quase almoço do
primeiro e do segundo ano. A Irene passou aqui para me chamar, toda cheia de
dentes:
-Bora dona Emília. Bora pro fogão que ainda tem
gás.
A Irene continua achando
graça na coisa do sonho do consultor. Ela é outra coitada que estudou aqui
quando era menina. Fez aqui o primeiro grau, já depois da minha época. Depois
foi com o irmão e a mãe morar na cidade e foi por lá que entrou no magistério.
Só depois de velha que foi fazer especialização e voltou cheia de sonho e
ideia. Me pergunto como é que pode uma pessoa como Irene, que passou por tudo o
que ela passou, que penou o tanto que ela penou na vida, me aparecer com essas
ideias de sonhar a escola dos sonhos. Bem vi ela lá semana passada, chorando
quietinha e sorrindo enquanto o consultor falava o que ele tinha ouvido das
crianças. Criança não tem juízo, não tem que dar ideia. Aqui o que a gente mais
tem é um bando de renês magrelos amarelos com as cabecinhas cheios de vontades,
mudanças, inovações.
No meu tempo a gente tinha
era que ir atrás das coisas. Não tinha pipa, era a gente mesmo que ia buscar
água no açude. A turma ia em sistema de rodízio já que quem ia pro açude
acabava perdendo o dia de aula. Teve um dia que fui eu e a Candinha no açude.
Eu não queria que ela fosse pra não me atrasar. Minha professora Anastácia foi
quem me obrigou a levá-la comigo. Não deu outra. Candinha foi no passo dela,
vendo flor, puxando conversa, perseguindo passarinho. Acabou que a gente passou
e muito da hora da escola. Quando finalmente chegamos de volta, fui me
desculpar com dona Anastácia. Achei que ela ia me bater, mas ao invés disso ela
me perguntou se eu tinha reparado no quê Candinha se distraiu. Disse que sim,
passarinho, mariposa, pedra, flor… Depois me perguntou se Candinha estava
sorrindo no caminho. Disse que sim novamente, e ela só sorriu de volta.
Foi por causa de gente
como dona Anastácia que eu quis ser professora. Por causa dela e das minhas
irmãs, Candinha principalmente. O consultor falou que quando ele vê as crianças
na nossa escola ele lembra dele mesmo. Aquele misto de fome e vontade. Aquela
cara de quem está com as tripas grossas comendo as finas, mas fica com a cabeça
trabalhando, fazendo perguntas, formulando hipóteses. Eu também lembro de mim
mesma nessas crianças, claro. E lembro ainda das minhas candinhas todas. Lembro
de dona Anastácia, do seu jeito teso e educado de falar com a gente. Ela era
assim sempre, suave e resoluta.
Já vêm o terceiro e o
quarto ano pro almoço. No fim da fila do terceiro ano vem Renê e junto dele o
consultor, já rindo. Do quê que eles já riem, meu deus? Esse jovem tem um jeito
diferente, e os estudantes parecem gostar dele. Sei lá, devem se identificar
com ele de algum forma. Ele conta uma histórias, faz umas alegorias, umas
macaquices. As crianças acabam que entram na dele. Começam a inventar também e
daqui a pouco já virou um teatro improvisado, sem roteiro nem sentido. Ele me
lembra o seu Ulisses de antigamente.
A gente saia da escola e
ia direto para a lavoura encontrar mainha e trabalhar. Às vezes a gente
encontrava seu Ulisses no caminho e ele nos dava carona no carro de boi dele. Apesar
de mais velho que a gente, Ulisses era novo ainda e tinha uma habilidade que eu
achava incrível: tocava o carro sem açoitar os bois. Ele cantava junto com o
assobio das rodas e cantando guiava o conjunto. Diziam que era pela música que
os bois sabiam o que fazer. Às vezes até cantavam junto com ele. Eu até lembro
um pouco do canto. Coisa de gente doida isso de cantar com boi, mas eu gostava.
-é o canto da água, meu senhor…
Bom, chega de pensar em
nada. Preciso botar a macaxeira na panela de novo, está esfriando e vai ficar
dura. Quando eu abrir a panela vai subir aquele cheiro de coentro e as crianças
vão vir babando, certeza.
-é o sonho da mata, iaiá…
Espera, vou colocar um
pouco mais de água aqui para amolecer. Candinha gostava da macaxeira bem mole,
quase uma papa. Já Irene falou que não come mais macaxeira para não lembrar da
penúria.
-é o canto da água, meu senhor…
Pronto, pouco mais de sal,
deixa ferver. Mas que bobagem dela. Dona Anastácia comia macaxeira, seu Ulisses
come até hoje, mesmo quase sem dentes. Tenho certeza que até esse consultor
come macaxeira.
-é o sonho da
mata, iaiá.
Não reparei se o Renê pegou comida, devo ter me
distraído. Ou o consultor, cadê ele? Ah, ali ainda com o Renê olhando para mim.
Espera, por que me olham assim amarelos? E esse povo todo com cara de tonto?
Por que essa gente toda me olha e me ri? Que falta de respeito mais descabida é
essa? E Irene, cadê Irene?
-Que foi, Irene, que que
esse povo tá olhando pra mim desse jeito?
-Iaiá Emília, você sonha
em melodia!
Imagem: Marcelo Valença
Leia do mesmo autor: Encanto
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