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Feijão Orgânico, Ladyce West


Tenho uma amiga dedicada à produção orgânica, com fazenda no interior do estado de São Paulo.
Recebi dela um quilo de feijão carioca. 

“É para colocar na geladeira. Não precisa deixar de molho de véspera, basta umas duas horas antes de cozinhar. Depois, cozinha em quinze minutos.”

“Você não vai acreditar na delícia que é”, interveio, uma amiga em comum que faz ioga conosco.

“Mas, olha,” disse a fazendeira, “tem que catar. Porque tudo é feito à mão e vem com pedrinhas, palha, alguns elementos da terra.”

Mal sabia que esta demanda iria me causar meia hora de grande prazer, e um dia repleto de memórias. Há muitos anos não cato feijão.  Encontrar ciscos foi encontrar minha avó, depois meu pai e a infância degustatória.

Sentadas, na sala de jantar, o jornal do dia anterior aberto sobre a mesa, uma pilha de feijão no canto cobrindo as manchetes antigas, uma tigela para cada uma, catávamos feijão para o almoço.  Minhas mãos pequeninas, de quatro a cinco anos, selecionavam pedrinhas.  Mostrava uma a uma, cada impureza à minha avó que, pacientemente, óculos de perto no nariz, vestido de florzinhas e avental de listras, cabelos grisalhos presos numa rede ‘invisível’, aprovava minha seleção para o lixo. Era o ritual da manhã na casa de vovó.  Feijão, tínhamos todos os dias.  Hoje me admiro de sua paciência, quando muitas vezes deveria estar pressionada pelo tempo, para completar a refeição na hora em que deveríamos comer.  Lembro-me de segurar cuidadosamente pedrinhas e palhas, entre o indicador e o polegar, com o dedo mindinho bem para cima, como se segurasse a alça de uma xícara de chá, e perguntar, “vovó, essa aqui também?” Com o olhar rapidamente levantado da tarefa ocupando as mãos, concordava e, logo, voltava os olhos para os grãos à sua frente.

Era outro tempo.  Século passado, segunda metade.  Tudo mudou.  Comprávamos feijão, arroz, cevada, lentilha, grão de bico, farinhas diversas, fubás, até macarrão fresco, a granel, nas feiras públicas semanais.  As barracas desses produtos punham as sacas de juta cheias, no chão, próximo ao caminho dos fregueses.  À medida que as vendas aconteciam, enrolavam as beiradas do saco, para deixar a mercadoria restante à vista de quem pudesse se interessar.  Um dos meus prazeres nestas feiras era ir de barraca em barraca, enfiando as mãos até os pulsos no arroz, feijão, ervilhas e grão de bico.  Papai, que era o comprador de produtos lá em casa, nunca me repreendia por essas experiências táteis.  Mas não gostou da vez que tentei usar como cortina, brincando de abrir e fechá-la, os talharins frescos, pendurados em paus roliços, nas barracas de massas.  Ir à feira era uma aventura para os sentidos. Papai me levava e deixava mamãe com meu irmão bebê em casa. Na mão direita, duas sacolas de lona de listras azuis e brancas e minha mão escondida na dele, do outro lado. Eram cheiros e cores intrigantes. E falatório alto dos feirantes chamando os fregueses. Parávamos nas frutas, nos legumes para papai inspecionar, procurando saber a origem do que via. No entra e sai de sombra e sol, eu espirrava, como se alérgica à luz. O chapéu de palha que sempre me protegeu quando saía com papai, não era suficiente. Voltava para casa avermelhada nos ombros e com marca branca no lugar das alças do vestido. Mormaço era pior, nunca entendi a razão, mas me queimava mais.

Papai fazia as compras lá em casa, tanto na feira, aos sábados, quanto na mercearia chamada O Grilo no centro da cidade depois da feira, assim como no Rei dos Cabritos, à Rua Riachuelo.  Voltávamos para casa com o carro cheio.  Na mercearia comprávamos enlatados e engarrafados da marmelada ao azeite e, invariavelmente, polpa de tamarindo da marca Bandeira que vinha numa lata grande, verde e dourada, para fazer suco em casa,  minha bebida preferida.  Bananas, comprávamos na penca, que dependurávamos na varanda de serviço. Até meus pais envidraçarem o local, dividíamos nossas bananas com os morcegos do bairro. Filho de portugueses, papai gostava da mesa farta, mesmo que a abundância de produtos deixasse minha mãe atarantada com espaço na geladeira e nos armários da cozinha. 

Foi no Rei dos Cabritos que vi pela primeira vez a carcaça dos animais que comíamos.  Tinha porco, cabrito, carneiro, coelho (parece um gato, sem pele e sem cabeça) e inúmeras aves vivas, prontas para serem abatidas na hora da compra.   Aves, não comprávamos lá, porque a loja que hoje é uma hamburgueria na Gávea, naquela época vendia aves e ovos. As galinhas vinham vivas para casa.  Mas mamãe não sabia matar.  Vovó sim, mas não tinha gosto em fazê-lo.  Cabia sempre à empregada matar a galinha.  Aliás, estava entre as perguntas importantes que mamãe fazia na hora de contratar uma cozinheira: “Sabe matar galinha?” Depenar, era outra tarefa trabalhosa e repugnante.

Voltar para casa era bom.  A esta altura eu já estava cansada. Mas o melhor mesmo era o mate que sempre tomávamos numa padaria de esquina, talvez na entrada do Bairro de Fátima.  Vinha num copinho de papel na forma de chapéu de palhaço invertido, dentro de um recipiente de alumínio também em forma de cone. Era gelado, espumante e açucarado.  Era nossa última parada, cansados e suados púnhamos um maravilhoso ponto final nas manhãs de sábado sem praia.

Refletindo, éramos mais orgânicos do que hoje. As compras na feira vinham em sacos de papel para os grãos, e enrolados em jornal para legumes e folhas.  O mate tomava-se em copo de papel com recipiente em alumínio reutilizável. Por que andamos para trás?

 ©Ladyce West, Rio de Janeiro, 16 de setembro de 2019


Ladyce West é autora de À Meia Voz, que pode ser adquirido na Amazon

Comentários

  1. Este texto delicioso (sim, amo comer feijão) evocou tanta memória boa que entrou pra história do nosso grupo! Grata por isso, Ladyce ❤️

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