“É para colocar na
geladeira. Não precisa deixar de molho de véspera, basta umas duas horas antes
de cozinhar. Depois, cozinha em quinze minutos.”
“Você não vai acreditar
na delícia que é”, interveio, uma amiga em comum que faz ioga conosco.
“Mas, olha,” disse a
fazendeira, “tem que catar. Porque tudo é feito à mão e vem com pedrinhas,
palha, alguns elementos da terra.”
Mal sabia que esta
demanda iria me causar meia hora de grande prazer, e um dia repleto de
memórias. Há muitos anos não cato feijão.
Encontrar ciscos foi encontrar minha avó, depois meu pai e a infância
degustatória.
Sentadas, na sala de
jantar, o jornal do dia anterior aberto sobre a mesa, uma pilha de feijão no canto
cobrindo as manchetes antigas, uma tigela para cada uma, catávamos feijão para
o almoço. Minhas mãos pequeninas, de
quatro a cinco anos, selecionavam pedrinhas.
Mostrava uma a uma, cada impureza à minha avó que, pacientemente, óculos
de perto no nariz, vestido de florzinhas e avental de listras, cabelos
grisalhos presos numa rede ‘invisível’, aprovava minha seleção para o lixo. Era
o ritual da manhã na casa de vovó.
Feijão, tínhamos todos os dias.
Hoje me admiro de sua paciência, quando muitas vezes deveria estar
pressionada pelo tempo, para completar a refeição na hora em que deveríamos comer. Lembro-me de segurar cuidadosamente pedrinhas
e palhas, entre o indicador e o polegar, com o dedo mindinho bem para cima, como
se segurasse a alça de uma xícara de chá, e perguntar, “vovó, essa aqui
também?” Com o olhar rapidamente levantado da tarefa ocupando as mãos,
concordava e, logo, voltava os olhos para os grãos à sua frente.
Era outro tempo. Século passado, segunda metade. Tudo mudou.
Comprávamos feijão, arroz, cevada, lentilha, grão de bico, farinhas
diversas, fubás, até macarrão fresco, a granel, nas feiras públicas
semanais. As barracas desses produtos punham
as sacas de juta cheias, no chão, próximo ao caminho dos fregueses. À medida que as vendas aconteciam, enrolavam as
beiradas do saco, para deixar a mercadoria restante à vista de quem pudesse se
interessar. Um dos meus prazeres nestas
feiras era ir de barraca em barraca, enfiando as mãos até os pulsos no arroz,
feijão, ervilhas e grão de bico. Papai,
que era o comprador de produtos lá em casa, nunca me repreendia por essas
experiências táteis. Mas não gostou da
vez que tentei usar como cortina, brincando de abrir e fechá-la, os talharins
frescos, pendurados em paus roliços, nas barracas de massas. Ir à feira era uma aventura para os sentidos.
Papai me levava e deixava mamãe com meu irmão bebê em casa. Na mão direita,
duas sacolas de lona de listras azuis e brancas e minha mão escondida na dele, do
outro lado. Eram cheiros e cores intrigantes. E falatório alto dos feirantes
chamando os fregueses. Parávamos nas frutas, nos legumes para papai inspecionar,
procurando saber a origem do que via. No entra e sai de sombra e sol, eu
espirrava, como se alérgica à luz. O chapéu de palha que sempre me protegeu
quando saía com papai, não era suficiente. Voltava para casa avermelhada nos
ombros e com marca branca no lugar das alças do vestido. Mormaço era pior,
nunca entendi a razão, mas me queimava mais.
Papai fazia as compras lá
em casa, tanto na feira, aos sábados, quanto na mercearia chamada O Grilo no
centro da cidade depois da feira, assim como no Rei dos Cabritos, à Rua
Riachuelo. Voltávamos para casa com o
carro cheio. Na mercearia comprávamos
enlatados e engarrafados da marmelada ao azeite e, invariavelmente, polpa de
tamarindo da marca Bandeira que vinha numa lata grande, verde e dourada, para
fazer suco em casa, minha bebida
preferida. Bananas, comprávamos na
penca, que dependurávamos na varanda de serviço. Até meus pais envidraçarem o
local, dividíamos nossas bananas com os morcegos do bairro. Filho de
portugueses, papai gostava da mesa farta, mesmo que a abundância de produtos
deixasse minha mãe atarantada com espaço na geladeira e nos armários da
cozinha.
Foi no Rei dos Cabritos
que vi pela primeira vez a carcaça dos animais que comíamos. Tinha porco, cabrito, carneiro, coelho
(parece um gato, sem pele e sem cabeça) e inúmeras aves vivas, prontas para
serem abatidas na hora da compra. Aves,
não comprávamos lá, porque a loja que hoje é uma hamburgueria na Gávea, naquela
época vendia aves e ovos. As galinhas vinham vivas para casa. Mas mamãe não sabia matar. Vovó sim, mas não tinha gosto em
fazê-lo. Cabia sempre à empregada matar
a galinha. Aliás, estava entre as
perguntas importantes que mamãe fazia na hora de contratar uma cozinheira:
“Sabe matar galinha?” Depenar, era outra tarefa trabalhosa e repugnante.
Voltar para casa era
bom. A esta altura eu já estava cansada.
Mas o melhor mesmo era o mate que sempre tomávamos numa padaria de esquina,
talvez na entrada do Bairro de Fátima.
Vinha num copinho de papel na forma de chapéu de palhaço invertido,
dentro de um recipiente de alumínio também em forma de cone. Era gelado,
espumante e açucarado. Era nossa última
parada, cansados e suados púnhamos um maravilhoso ponto final nas manhãs de
sábado sem praia.
Refletindo, éramos mais
orgânicos do que hoje. As compras na feira vinham em sacos de papel para os
grãos, e enrolados em jornal para legumes e folhas. O mate tomava-se em copo de papel com recipiente
em alumínio reutilizável. Por que andamos para trás?
Ladyce West é autora de À Meia Voz, que pode ser adquirido na Amazon
Este texto delicioso (sim, amo comer feijão) evocou tanta memória boa que entrou pra história do nosso grupo! Grata por isso, Ladyce ❤️
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