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A Imaginária, Adalgisa Nery - Primeiro capítulo

   Às vezes, o pensamento me vem, como agora. é como se todos os instantes em que vivi tivessem
deixado uma profunda marca sobre as múltiplas facetas do meu ser. 

     Estou ao largo da madrugada. Chego à janela aberta. O primeiro plano da paisagem é a rua asfaltada, cortada por  trilhos brilhantes e polidos pelo uso. O segundo plano é um pequeno morro salpicado de casebres. Sobre todas essas coisas um imenso e profundo céu, e o silêncio. Se eu pudesse alcançar o cume da mais alta montanha do universo e varrer com o olhar toda a extensão do globo terrestre, veria que a única coisa que existe é a solidão.

     As portas do meu ser, lentamente, se abrem e despejam na imobilidade da noite todas as imagens que participaram dos meus erros e dos meus acertos ocasionais. Elas se levantam impiedosas, confabulam, discutem a minha pessoa humana, apalpam as minhas carnes sofrias, fazem perguntas irrespondíveis e depois largam-me desunida de mim mesma. Num trágico sentido de matéria desprezível, no fundo do meu raciocínio há qualquer obstáculo intransponível que me impede fixar se esse desterro, em que estou jogada, é oriundo de alguma palavra, gesto recente ou remoto. Numa paralisação completa, sinto o movimento das raízes da minha origem procurando alcançar o meu pensamento. O vigor da vontade sobre a integridade dos meus sentidos se esfacela na luta de analisar os vagos traços  de ligação na soma de experiências, erros e ímpetos mal distribuídos durante a minha vida, que, afinal, está resumida apenas numa simples contagem de anos. Uma tristeza de vencida, uma espécie de aceitação de uma quantidade maior sobre a menos, é permanente e viva no meu espírito. Sei que essa aceitação me acompanhará até o túmulo. ela nunca foi vencida pelas grandes alegrias e nem mesmo pela força do amor que foi o brado mais espontâneo, mais profundo e mais verdadeiro dos meus anos de vida. Um volume espesso de vozes em surdina atira o pensamento contra as paredes do meu ser indefeso, e larga-me, depois, numa nostálgica e confusa recordação do presente e de um passado incomensuravelmente perdido. Nada pertence propriamente à minha memória esgarçada em tempos imemoriais. Sinto-me flutuando no espaço e vejo os acontecimentos se incorporando um a um ao meu espírito.

     Estou, como disse, dentro da madrugada e percebo, trêmula, aproximando-se tenebrosa e incontida, a onda de vozes, a procissão de formas que virão exigir de mim os motivos pelos quais, em nome da verdade, eu provoquei ou evitei circunstâncias para acontecimentos.  Estou, entretanto, impossibilitada não só de manter uma defesa, como de aceitar uma acusação, pela precariedade de elementos nítidos  e positivos que poderiam dar as razões esclarecedoras de culpa ou absolvição.

     Tenho verificado minuciosamente se há qualquer doença no meu corpo. Sim, é necessário um bom e meticuloso exame no organismo humano. Alguma enfermidade poderia influir e até mesmo criar, no meu pensamento, fantasmas, vozes e ideias desconexas. Os médicos, porém, dizem que  nada de anormal há sobre a minha saúde. Afastada então essa possibilidade, debruço-me aniquilada à beira do abismo da agonia rasgada  pela realidade imponderável. Tenho a sensação de que estou morrendo, sob os estertores dos últimos instantes, numa fusão de dores físicas e tormentos da alma. Invade-me um sentimento estranho, como se fossem as garras do arrependimento, um arrependimento lancinantemente agravado pelo silêncio da minha memória, que não acusa autodeterminação que justifique uma equação equivalente ao meu estado de espírito dilacerado. Não mostra nenhum gesto ou palavra com podêres tão violentos contra a minha alma a ponto de reduzir-me ao caos em que presentemente me encontro. É uma espécie de estraçalhamento caindo em jato, espalhando-se depois obliquamente nos meus sentidos, em todas as direções e nas mais profundas medidas.  É uma penetração espectral que vai `aminha unidade, pulverizando a minha fixação no presente, balançando-me no espaço sem fronteiras, desagregando o meu ser, levando-me sufocada ao princípio de todos os princípios e anulando-me ao conhecimento do mundo, das pessoas e dos objetos. É como se eu fosse responsável por todos os crimes passados e coubesse a mim toda a culpa nas degradações futuras.  Atordoada e cega, sinto-me envolvida por mãos gigantescas, mergulhando a minha boca numa fumaça densa e irremovível até pelos grandes ventos escondidos.  E nesse entorpecimento chega-me a sensação de aspirar o perfume da primeira flor, de ouvir o ruído do primeiro movimento dos oceanos, de sentir o instante em que se deu a paralisia dos desertos, e chego mesmo a receber, sobre  a minha pele, a primeira partícula de calor lançada sobre o universo. Então, paralelamente cresce em mim uma ternura incontida, uma doçura humilde pelo chão que piso, pelos objetos e móveis que me cercam, pela minha roupa largada na cadeira do quarto, pela rua desprezada e sem movimento, pelos muros brancos e altos que vigiam sem interrupção a propriedade daqueles que dormem neste momento. E sempre, como agora, desce o pensamento e cobre a menina que um dia fui, mas prematuramente desgarraram do ventre de uma época que completaria o seu ciclo. Reconheço que não cheguei a ser um acontecimento. Pela exígua medida de minha vida dentro do eterno, sou e serei apenas uma experiência. Muitos milhares de dias separam-me da minha infância e da mulher que sou hoje. Farei o esforço para retroceder na medida do possível à recordações da minha meninice. Tentarei me transformar naquilo que eu pensava ser.  Contarei como naquele tempo eu já vivia sofrendo e amando outras imagens e possuindo uma desconhecida e tenebrosa intuição de minha atual realização medíocre. Sem compreender, eu sentia em mim a implantação da duas fontes em crescimento: a positiva e a negativa. Agora, chego à conclusão dolorosa de que esses dois polos opostos não trouxeram o que fatalmente deveria se processar na minha alma: o equilíbrio.

     Puseram-me à  parte da maioria dos seres humanos de que difiro pela sensibilidade, imaginação e memória, pela emoção e pela interpretação, se bem que durante a vida não cessasse de sentir, dolorosamente como eram fracas e ínfimas, em mim, essas faculdades que acabo de enumerar. Mas, precisamente por isso, porque difiro da memória e pertenço a uma categoria especial de indivíduos, as minhas ideias, as sensações de espaço e de tempo e a consciência de desvalorização que tenho de mim mesma, são particularmente perturbadoras. E qual é essa categoria a que pertenço? Quais são essas pessoas que formam um grupo? São os poetas e artistas que possuem no mais alto grau a faculdade de viver não somente o seu próprio tempo e as suas impressões, mas também a vida exterior e a vida interior dos outros através do cálculo da sensibilidade.  De sentir não somente a sua paisagem, a sua raça, mas também a dos outros, com uma memória emocionante e particularmente desenvolvida. Mas para pertencer a essa classe é necessário ter passado por uma grande e longa corrente de exist6encias, pela serie de ancestrais e reunir, em uma pessoa, a frescura da sensação, a espontaneidade selvagem, a  imaginação fecunda, a profunda vida inconsciente e enriquecida pela experi6encia adquirida no decurso desse atroz seguimento de séculos. Todo esse extrato de tempo se transforma em consciência refinada e aguda.  Essas transformações para a evolução fizeram de mim uma felizarda ou uma vítima? Deram-me uma e outra coisa. Esta sede de afirmar o ego dentro de vários conflitos e tormentos é a base de sentimento de universalidade. Pela sensibilidade sem limites em todos os planos, eu poderei alcançar o sentido universal. Mas adquirido esse sentido universal, eu fracassarei na vida individual. Daí o desequilíbrio a que me referi acima.

     Algumas reminiscências da minha infância  serão descritas aqui apenas como elemento de coordenação dos fatos à apresentação de um material destinado a pesquisas.  Não poderia descrever tôda a minha vida, a começar pela infância, porque  então estaria tentando fazer autobiografia. E não é êsse o meu intuito. Quero justamente fugir a essa ideia, pois acabei de declarar que me sinto na equação de um limitado espaço de tempo, uma experiência e não um acontecimento.  A experiência não traz o sentido do definitivo. É sujeita às mutações para melhor ou pior, no limite de um tempo mais longo ou mais curto. O acontecimento é tudo que tem como base o definitivo dentro do eterno.

     Mas, a noite está passando e a angústia está mais densa. Tenho a impressão de um peso descomunal descendo sobre meu corpo frágil e trêmulo. E de onde vem essa angústia? Virá do sentimento secreto que sou só, desconhecendo a paz, o sonho, a harmonia e a quietude interior? Que impulso desenfreado é esse que me martiriza? É a consequência do deslumbramento dos meus sentidos?  É a tendência em bifurcar a verdade com razões diferentes, sabendo que mais adiante eu unirei as dois caminhos novamente no bloco inteiriço? A sede de criar, de esmiuçar o que nos parece impreciso, é a  essência da natureza humana. A vida em todas as suas manifestações de alegrias e de dores é a forma, a encarnação de uma coisa que desconhecemos. Sentimos sempre que essa forma é frágil e incerta, mas há também em nós um receio quase infantil de desaparecer sem deixar um vago traço.

     Tento consolar-me. O fato de pesar no meu próprio pensamento me faz compreender a minha incompreensão. É a prova irrefutável de que estou em comunicação com alguma coisa maior do que eu. Estou em ligação com uma parcela daquilo que não tem forma, nem tempo nem espaço. Daquilo que está morto para a terra, para mim, para minha exost6encia, uma parcela daquilo que nos outorga a prudência de admitir a metamorfose: a morte.  Aproveito essa ligação para me sentir semelhante a Deus. Mas Deus está no alto infinito e eu estou na terra. Penetrando inteiramente nessa comunicação, desenvolvo o meu conhecimento, a minha consciência, isto é, os meus sofrimentos. Nessa comunicação eu  morro para a terra, para suas formas e para as suas leis.  Ligando-me a Deus, ligo-me ao infinito e ao ilimitado. Mas... isso é terrível para mim, que ainda tenho de viver no limitado, no finito de todas as coisas que , por se acabarem, são curtas. Se essa angústia não cessar de aumentar eu morro, eu morro para a vida terrestre e para o futuro terrestre.

     O ar da madrugada vibra como um sussurro de inseto aos meus ouvidos. O abismo do céu noturno mostra as estrelas que marcam o próximo alvorecer. Estou excessivamente mais cansada, terrivelmente mais confusa e menos dona de minha alma e do meu corpo. O zumbido da brisa sobre os meus cabelos tem algo de fascinador. Abro a boca num gesto de morder o ar que tem perfume de flor, de fruto, de terra úmida e de folhagem recém-nascida. Lembro-me que muitas vezes vi animais mordendo o espaço como que perseguindo os fantasmas próximos. Estou fatigada de corpo e excitada de espírito.

  

A Imaginária, Adalgisa Nery
Ed. José Olympio, Rio de Janeiro 1970 
Págs, 3-8

Imagem: capa do caderno de Cultura da Paraíba & entrevista com Ramon Nunes Mello, organizador do livro "Do fim ao princípio - Adalgisa Nery - poesia completa" (José Olympio)

Comentários

  1. Ai, ai, que conflito interno narrado longa e minuciosamente. Embora bem escrito, com frases bem feitas, achei muito arrastado, um pouco cansativo de ler.

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    1. Achei o primeiro capítulo bem intimista. Me lembrou Lispector.

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