meu cabelo vai se tornando branco, serviria de coisa valiosa para quem quer que fosse, teria me empenhado em escrever da melhor forma que pudesse. Teria comprado cadernos com o dinheiro das coisas que vendia na feira, e os teria enchido das palavras que não me saem da cabeça. Teria deixado a curiosidade que tive ao ver a faca com cabo com marfim se transformar na curiosidade pelo que poderia me tornar, porque da minha boca poderiam sair muitas histórias que serviriam de motivação para nosso povo, para nossas crianças, para que mudassem suas vidas de servidão aos donos da terra, aos donos das casas na cidade.
Quando Bibiana já morava novamente entre nós, passei a ler tudo o que visse em suas mãos ou nas de Severo. Passei a sentir fome de leitura, levava livro até para a sombra do descanso na roça. Essas histórias que encontrava nos livros e ouvia da boca do povo vão se desenrolando em minha cabeça como um novelo de malha de apanhar peixe. Quando sento quieta para costurar uma roupa velha ou levanto a enxada para devolvê-la de novo ao chão, abrindo covas, arrancando as raízes das plantas, é que esse fio, que tem sido meu pensamento, vai se fazendo trama. Nessas horas, eu, que tomei raiva de homem, que nunca mais quis deitar ou casar com homem talvez deitasse de novo só para ter filhos, para ter com quem sentar para desfiar essas histórias que não me abandonam. ( cap. 17, pag. 170
Resenha do livro:
A história do romance tem como centro a família de Zeca Chapéu e Salustiana, e suas filhas Bibiana e Belonísia, descendentes de escravizados. O cenário da obra é a fictícia Fazenda Água Negra, um local que representa a síntese do sertão brasileiro e suas relações sociais, o latifúndio e o trabalho servil, marcados pela violência, a seca e também pelas crenças, lendas e religiosidades próprias da mestiçagem cultural e da ancestralidade africana. “Meu pai havia nascido quase trinta anos após declararem os negros escravos livres, mas ainda cativo dos descendentes dos senhores de seus avós”.
Uma obra polifônica, marcada pelas narrativas das irmãs Bibiana e Belonísia, e de uma entidade encantada, vozes femininas que expressam memórias coletivas e atribuladas de desigualdades raciais, sociais e de gênero, e também evocam as resistências ancestrais dos povos quilombolas, suas lutas e ligações com a terra. “Quando retirei a faca da mala de roupas, embrulhada em um pedaço de tecido antigo encardido com nódoas escuras e um nó no meio, tinha pouco mais de sete anos. Minha irmã, Belonísia, que estava comigo, era mais nova um ano”.
A narrativa se inicia com uma tragédia compartilhada pelas irmãs, a qual deixa marcas profundas em suas vidas pelas décadas seguintes, criando uma cumplicidade de gestos e silêncios. Bibiana e Belonísia vocalizam as histórias dos demais personagens da trama como Zeca Chapéu Grande, Salustiana, Donana, Maria Cabocla, Severo e os proprietários da fazenda, e apresentam esse mundo de contradições e injustiças pelos seus olhares infantis, passando pelos da juventude abreviada pela maternidade e casamentos, e chegando às visões da vida adulta. “Todas nós, mulheres do campo, éramos maltratadas pelo sol e pela seca. Pelo trabalho árduo, pelas necessidades que passávamos, pelas crianças que paríamos muito cedo(..)”.
Conflitos e conciliações coexistem na vida desses personagens, Zeca Chapéu Grande, pai das meninas, líder místico, referência de trabalho para as demais famílias agricultoras da fazenda, é exemplo maior desse paradoxo, conduz os rituais do Jarê e dos encantados e as práticas de curandeira aprendidos com a mãe Donana. Vê sua condição de trabalho e de vida na fazenda Água Negra, assim como a dos demais trabalhadores, com certo fatalismo, mas fica indignado quando tem a terça parte da produção de sua pequena roça subtraída pelo feitor da fazenda.
Bibiana, a filha mais velha, também se revolta com tal situação e da humilhação do pai frente à mulher e demais filhos.
Bibiana, professora formada na cidade, junto com o primo-marido Severo, começam a organizar os demais trabalhadores de Água Negra, reivindicando o status de território quilombola para aquelas terras nas quais há décadas trabalhavam aquelas famílias, mas que não tinham a sua posse. Há, porém, um custo humano para essa luta pela emancipação da exploração e da servidão, sendo a terra tingida de vermelho. “Tudo foi se tingindo de vermelho e segui o rastro do rio de sangue que corria, não se sabia de onde”.
Torto Arado, mais que o título desta obra, representa um instrumento agrícola arcaico e obsoleto, que simboliza as permanências do passado colonial e as marcas indeléveis e deletérias da escravidão, fundantes da formação da sociedade e do Estado Brasileiro, de suas mazelas e desigualdades. “Era um arado torto, deformado, que penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil, destruída, dilacerada”.
(Resenha do site SBC)
É um grande livro, amei demais...
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