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E Assim Nós Seguimos...

 ...De Fio Jasmim quem nos trouxe as últimas notícias foi Eleonora Distinta de Sá, semelhante nossa, pertencente, mais tarde, à confraria de mulheres. Ela nos trouxe uma face encoberta de Fio Jasmim, que talvez nem ele mesmo soubesse ser possuidor. Distinta de Sá foi a única mulher que percebeu o esvaziamento que Fio trazia no peito. Ela compreendeu que nele morava também o desespero. Mas Fio Jasmim, ele próprio, como homeme, aprendera que o território macho era outro. Era uma região que se situava a mil milhas de diferença das terras das mulheres. E, como proprietário de uma extensa gleba, o homeme ali tinha o dever de dominar as mulheres, de alguma forma. E mais, tinha ainda de desafiar e causar inveja a outros machos. Não sendo de bom tom  o derramamento das dores do macho - assim pensava Fio Jasmim - por isso ele calou qualquer sintoma de mortificação em sua vida. Pouco importava a dolorida lembrança de ter sido preterido pelocoleguinha branco para representar um príncipe. Era preciso esquecer essa lembrança, negá-la sempre. Só as fêmeas podem dar vazão às suas agonias, às suas aflições, das menores às maiores. E, por isso, sempre os olhos secos de Fio Jasmim diante da morte e da vida. Notícias de uma mulher que tinha se matado por ele, filhos dele nascendo, a mãe morrendo, o pai, meses depois. Dores não vazam dos olhos dos homens.

     No entanto, a lição de cunho mais severo e doce que Fio Jasmim aprendeu foi com uma mulher. Uma mulher a qquem ele nunca cortejou. Com ela, aprendeu que o homem podia, sim, verter em lágrimas as suas dores e sua perplexidade diante da vida, diante do mundo.

     E foi Eleonora que enxugou carinhosamente as lágrimas de Fio Jasmim, enquanto esteve por perto dele, antes de ela se juntar a nós. Os profundos prantos do homem foram ouvidos por ela. Lágrimas em turbilhões, porque antes represadas em algum canto da alma dele. Em um desses momentos de livres lágrimas, tal a extensão da confessada dor, antes negadda, Fio Jasmim falou para a Distinta de Sá spbre a música que Tina tinha feito para ele um dia. 

     O tesouro, lembrança de um amor vivido, a partitura da composição musical, ficava cuidadosamente dentro de uma caixa, antes guardadora de camisa. Não em uma caixa qualquer, de uma camisa qualquer. Mas de um antigo modelo de camisa que simbolizava bem a vaidade e o poder aquisitivo dos homens que a possuiam na época. Era uma camisa cara, até se popularizar, quando passou a ser confeccionada, então, com um tecido barato, que imitava a fabricação original. A cobiçada camisa era nomeada de "volta-ao-mundo". Na feitura do  odelo original, um tecido branco, fino e transparente dava certa leveza à peça do vestuário masculino. Na caixa vazia, que durante anos guardou uma dessas camisas pertencentes ao pai de Jasmim, que a partitura encontrou proteção. ali carinhosamente, ao contrário das cartas abandonadas, largadas a esmo, que fio guardava a partitura de composição criada para ele: "Canção para ninar menino grande". A ária, que abriria, um dia, um grande musical, concebido por Tina, a partir da história de amor dela com Fio Jasmim. Na composição, além das vivências amorosas de tina, histórias de amor de mulheres que encontramos em nossos caminhos, compõem o texto.

     Hoje, Eleonorane eu seguimos Juventina em suas andanças e em sua história. Misturamos as nossas à dela. Fiz a promessa de contar a minha um dia para ela. Será também, quem sabe, uma canção...Cultivo na memórria e ao lado de meu corpo, bem próximo a mim, a extensão de um amor que me foi oferecido até quando a vida me permitiu. O meu amado, perdi para a morte. Dele, guardei a minha filha, a nossa. 

     Quanto à vida de Juventina Maria Perpétua com Fio Jasmim, minha amiga me afrima, sempre, que nunca precisou de um amor diferente do que ele lhe oferecia. Estava satisfeita, feliz  até. Não queria um homem constantemente a seu lado.Não precisava posar de esposa ou de namorada preferida. De noiva muito menos. Não queria ser aquela  que conta horas por horas, dia por dia, medindo o tempo que falta para se permitir ser oficialmente da pessoa amada. Ela gostava da relação que mantinha com Fio Jasmim. Nem esposa, nem noiva, nem namorada. Amante sim, talvez. Ela gostava de Fio Jasmim. Se amor era o sentimento que ela nutria por ele, ela era, sim, com toda certeza, amante de Fio. Amante dele desde sempre.

     Sim, amante desde sempre, é o que afirmou Tina ao contar em detalhes a história de amor que ela viveu com Fio Jasmim. Algumas passagens eu já sabia; há muito que ela vem trazendo pedaços de relato desde que chegou aqui. Todas nós estamos sós, mas a nossa confraria não nos deixa sentirmos sozinhas. Somos e estamos umas com as outras. E, quando o vazio no peito nos atormenta, não nos entregamos ao desespero, compartilhamos a dor ancestral que existe em cada uma de nós. Acho que o vazio nato que Tina traz no peito, ela coloca na música. "Canção para ninar menino grande"nasceu, me disse ela, em dias em que Fio Jasmim sumira da visão concreta dela durante meses. E a interminável ausência dele foi se dizendo, então, em música. Seria "Canção para ninar menino grande" a canção da ausência, da falta, do vezio transbordante no peito de Tina? Não sei...

     Sei apenas, a partir de minha intuição feminina, que novas canções esrão para nascer na vida de Tina. Não só na dela. Um encantamento paira no ar quando Juventina e Eleonora se encontram em nossa roda. As outras amigas também estão tendo essa boa premonição. Quem sabe a busca de Eleonora por um passado irrecuperável tenha resposta nesse tempo presente a construir. Queremos ser cúmplices e testemunhas das histórias de amor, enquanto vivemos as nossas. Uma paixão também ameaça meu peito. ( Em: Canção Para Ninar Menino Grande, Conceição Evaristo. Ed. Pallas 2022)

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