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Se Pudesses, Deverias Frequentar Um Outro Mundo, Francisco Bosco

 Prólogo


     Butch Cassidy e Sundence Kid estão em fuga pela mata. A polícia os persegue, com rastreadores, implacavelmente. Os dois fugitivos chegam a um precipício, de onde não podem voltar. Embaixo, muito embaixo, passa um rio. Os poiciais estão a caminho: eles vão chegar. É preciso o salto. Sundence diz: " eu não sei nadar". O abismo, enorme, o medo, a vertigem - só de olhar: Mas é preciso. A  polícia. Não tem volta. "Feche os olhos". Pulam.

Lutar

    É essa a cena, no amor, que antecede a ruptura e o luto. O pulo é o prólogo do luto. e se é preciso pular é porque não tem volta. A polícia está a caminho. Pode ser que ela nunca chegue, mas ela estará sempre a caminho ( é isso a angústia). pode-se não pular, alguns de fato não pulam nunca, e é possível que a polícia nunca chegue, mas estará sempre chegando. E todos somos como Sundence: não sabemos nadar. O precipício, a concentração das forças, o pulo. Só que ao invés do rio, cai-se em outras paisagens: o deserto, o mar aberto. A imobilidade, o vazio, o infinito, a desmesura, o nada. E começa a metamorfose do tempo.      Não é por acaso que o primeiro preceito de Os Remédios do Amor diga respeito à ocupação: "Portanto, assim que achares que nossa arte pode curar-te, trata de evitar em primeiro lugar a ociosidade", aconselha Ovídio, dando início à série de recomendações que consistem no que a vontade pode fazer diante do luto. Os Remédios do Amor é um poema sobre a vontade: o luto enquanto luta. Ocupar-se, ou ainda, reocupar-se, é o trabalho primordial do luto. Trata-se, no vocabulário econômico da psicanálise, de operar o desligamento libidinal do sujeito a um objeto perdido e religar os investimentos libidinais a outros objetos por vir. Por que se trata de uma tarefa de vontade, isto é, um movimento que exige força e deliberação, explica-o o próprio Freud, em seu ensaio Luto e Melancolia:  "A prova de realidade revelou que o objeto amado não  existe mais, passando a exigir que toda  libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto. Essa exigência provoca uma oposição compreensível - é fato notório que as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal nem mesmo, na realidade, quando um substituto já se lhes acena." Existe portanto um movimento inercial da libido. desligar-se do objeto a que está habituada é uma espécie de gesto contra naturam. Daí Ovídio apressar-se em recomendar aos pacientes do amor que se ocupem. pois a ociosidade é o indício de que o trabalho de realocação libidinal não está sendo feito. É preciso reinventar o tempo, criar novos agenciamentos, dispor-se ao futuro - mas com grande dificuldade, pois o objeto perdido levou consigo o brilho do mundo, seu sentido: "No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio", sentencia Freud.

     Mas isso que o poeta latino e o pai da psicanálise descrevem em termos econômicos pode também ser pensado em termos temporais. Com efeito, o luto é uma aventura do tempo. A necessidade de reocupar-se revela uma experiência terrível do tempo. Pois se o tempo no amor é um animal doméstico ( embora nem sempre), no luto ele se torna selvagem, descontrolado. O tempo estava em ordem no amor; o amor escalona o tempo, e o afeto permanente fornece uma espécie de rede protetora. Não se cai do tempo no amor. O amor nos protege  do tempo ( para os ateus, não será o amor uma das únicas utopias possíveis?). Uma vez o amor perdido, o tempo abre sua bocarra. Transforma-se então nessa hiência, nesse buraco, nesse nada, nesse contra-o-quê nós devemos seguir. Tudo nele faz eco, é oco, retorna, some na dist6ancia ou morre a nossos pés. Sala enorme, deserto, mar oceano, qualquer cenário sem margens. No luto, o tempo é sem margens. Balança como um barco. E a gente se move sem ter onde segurar. Não tem corrimão. Nem cadeiras. Fica-se de pé o tempo todo. O tempo é todo, todo o tempo. O tempo é enorme, impercorrível, como para o personagem abandonado pela a mulher, num conto de Caio Fernando Abreu:  "Porque no meio daquele momento entre a vodca e a lágrima, em que me arrastava da sala para o quarto, acontecia às vezes de o pequeno corredor do apartamento parece enorme como o de um transatlântico em plena tempestade." O tempo no luto: transatlântico.

     Vê-se claramente o estreito nexo econômico-temporal, O que torna o tempo vazio, desmedido, instável é a falta de ligações libidinais com o mundo. Perdeu-se um mundo, não se colocou ainda outro em seu lugar. É preciso investir de libido novos objetos, novas pessoas, a fim de tornar o tempo povoado, habitável. Nesse começo do luto, a solidão é uma experiência radicalmente negativa. A solidão não assenta, o tempo queima: não se cessa de enviar a própria solidão ao objeto perdido, clamando por sua presença. Quando a solidão puder parar no lugar, aí sem dúvida uma importante inflexão terá havido no processo do luto. A solidão que se envia é bastante parecida com a ansiedade: um estar sempre um pouco aquém ou além do instante.  O objeto perdido nos devolveria ao centro do tempo, dar-nos-ia novamente a gravidade. Pois no luto, como na ansiedade, flutuamos à deriva. Com efeito, luto e ansiedade são dois estados subjetivos da espera: "E lembro que pensei agora o telefone vai tocar, e o telefone não tocou, e depois de algum tempo em que o telefone não tocou, e podia ser Lucinha da ag6encia ou Paulo do cineclube ou Nelson de Paris ou minha mãe do sul, convidando para jantar, para cheirar pó, para ver Nastassia Kinski nua, perguntando que tempo fazia ou qualquer coisa assim, então pensei agora a campainha vai tocar", escreve ainda Caio Fernando Abreu. É por isso que no luto o telefone sofre uma brusca mutação ontológica: passa a ser o mais importante dos seres, aquele de quem depende nosso destino.

     Para Vinicius de Moraes, como se sabe, o trágico do amor é que ele acaba. Ou melhor, que a paixão acaba, e para Vinicius é a exigência  da paixão - a que sua criação poética estava irremediavelmente atrelada - que comanda os movimentos da existência. Mas isso é ainda dizer muito pouco.  pois o trágico não é que a paixão acaba. Se fosse só isso, bastaria trocar de objeto, como faz o desejo. O problema é que o amor não acaba: se às vezes é preciso pular, é sempre por outras forças, impasses, apelos, mas não porque o amor acaba. Se o amor acabasse não haveria o luto. O luto é precisamente o fato de que o  amor só acaba depois. O escritor argentino Macedonio Fernandes dizia que "as coisas começam sempre antes"; já o amor termina sempre depois. O luto é o operar-se vivo do amor. é preciso separar os mundos, desjuntar o tempo, afastar-se libidinalmente - para que então, depois, o amor acabe: "Se pudesses, deverias frequentar um outro mundo", diz Ovídio.

Epílogo

     "A realidade é dura/ mas é aí que se cura", reza o samba de Nelson Rufino. Pois no luto, ver o outro com outro é a prova dos nove. O fim da esperança para os que ainda a tinham. O fim da fantasia para os que já não a queriam. O que os olhos veem  o coração não desmente. O outro é o outro. É o fim do mundo. O susto. A dor. O salto: voc6e é você. É o começo do mundo.


Em: Banalogias, Francisco Bosco. Ed. Objetiva 2007, págs.59-64




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