Aos mortos de Lídice e de
Serão os anjos da paz
Estes seres nebulosos
Surgidos da noite enorme
– Noite de luto e mortalha. . .
Vestidos de dor, manchados
Da lama de terra e sangue
Que há nos campos de batalha?
Serão os anjos da paz?
Eles vieram da noite
No sopro da tempestade
Trazendo nas vestes negras
Do lado do coração
Uma camélia tão branca
De um branco muito mais branco
Que as asas de uma ave branca
Que as asas de uma ave mansa
Passando na claridade
Num vôo só de esperança
Sem sombra deixar no chão.
Mas eles têm sobre o peito
Têm sobre o peito a couraça
Feita de ferro e marfim. . .
Feita do plasma candente
Que restringe e que amordaça. . .
Feita de fluidos ardentes:
Matéria que cristaliza
Na saliva das serpentes.
Serão os anjos da paz
Estes seres nebulosos
Surgidos na noite enorme?
Porque vieram de longe
Da mais distante paisagem,
Porque solenes chegaram
De além das nuvens, de além
Dos ninhos da ventania,
Não se pense, não se diga
Que trazem de Deus mensagem,
Que são anúncios de aurora,
Que os seus cantos são consolos
São divinos de harmonia.
Porque do rosto arrancaram
A velha e sinistra máscara
De algozes petrificados
E sobre o rosto colaram
A doce e ferida face
De mortos purificados
Não são menos as reservas
De rudes conquistadores
Não são menos as relíquias
Dos injustos, dos impróprios,
Dos de sempre vencedores.
Estes seres nebulosos
Que passam nos ares mortos
Entre o fumo e o sol do incêndio
Como estranhos meteoros
Não são os anjos da paz.
Soldado desconhecido
Cinza de carne e de terra
Duro minério sofrido
Planta do amor e da guerra
Soldado desconhecido
Escuro soldado pobre
Agora mostra o teu rosto
Agora limpa os teus olhos
Da seca espuma de sangue
Que toda a face te cobre.
Soldado desconhecido
Escuro soldado pobre
Afasta a nuvem de sono
Com que a morte te humilhou
Desfaz o véu de vertigem
Que o céu das almas nublou
Verás então que estes anjos
Agora os ares rompendo
Em luz de sonho e de amor
São aqueles mesmos fantasmas
As mesmas aves sedentas
Que em longos tempos antigos
Sempre o teu corpo rondaram
Pelo calor do teu sangue
Pelo sal de teu suor.
Soldado desconhecido
Enxuga os vidros do dia
Da névoa azul da distância:
Que se estenda além das cores
Além das ondas impuras
A visão maravilhosa,
Céus mais justos se incorporem
Aos relevos das alturas
Que nos campos se propague
Se renove eternamente
Do teu ser a flor perene,
Nasçam folhas nas ramagens
Em manhãs resplandecentes
Nasçam frutos, madrugadas. . .
E a erva má do desespero
Não ressurja entre as sementes.
Soldado, soldado pobre
Soldado desconhecido
Símbolo dos deserdados
Marca de treva e silêncio
Muda memória encoberta
Força adulta e indefinida
Que a própria dor não consome
Soldado desconhecido
Soldado escuro, soldado
Agora mostra o teu rosto
Agora diz o teu nome.
O soldado:
Embora o corpo repouse
Já livre do meu cansaço
E o nível da luz se estenda
Na ausência do sofrimento,
Uma dor sinto no braço
Profunda como a lembrança,
Dor ainda na perpétua
Cicatriz do movimento.
Pois assim mesmo encerrado
Nestas muralhas de frio,
Daqui, da sombra fechada
Do chão que eu próprio formei,
Eu vejo a chama do dia
Eu vejo a glória do rei,
Vejo a flor, o verde, o gado,
O idílio, a pátria de alguém
Por quem feri e matei.
Aqui no centro isolado
Deste casulo de cinza
Guardo o sopro que me resta,
Ouvindo os surdos gemidos,
As vozes desesperadas,
As palavras proferidas
Pelas bocas soterradas,
Pelos lábios das feridas,
Como a chuva sobre o sono
Dessa eterna madrugada.
Mas a dor de mim reflui,
Dor que exprimo e em que me exalto
Sentindo bater nas lajes,
Como em tambores de asfalto,
A marcha da multidão:
Sentindo as ondas de ferro,
Sentindo as ondas de assalto
Que vêm dos carros de guerra
Até às grades de pedra
Que encerram meu coração.
Um desejo então consagro,
Profiro sobre as memórias;
Desejando que me dessem
Uma terra, um chão mais doce,
Uma terra sem fronteiras,
Sem crateras, sem trincheiras,
Um chão puro e mais feliz
Onde pastassem ovelhas
Ou, bebendo o azul do dia,
Crescessem também roseiras.
Terra fértil, solo ativo,
Chão materno e universal,
Onde o meu corpo voltasse
Ao seu repouso natal;
Onde o meu corpo lavrado,
Perdido em nome e lembrança,
Chegasse enfim à amplitude
Da pureza vegetal.
* Na mesa da Conferência da Paz em 1946, ao lado dos representantes de várias nações, sentaram-se Baruch, Thysssen e outros fabricantes de armamentos. Anjos da Paz! 1947
Em: Joaquim Cardozo Poesias Completas, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1979, págs31-36
Leia aqui sobre a vila de Lídice a quem o poeta dedica o poema acima
Marie Uchytilová - é a autora das esculturas exibidas acima
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