Já pressentindo o que o aguarda, o leitor mergulha em vastos mundos de sonhos, desejos realizados ou não, dessas 20 grandes mulheres, escolhidas entre atrizes e cantoras, como Fernanda Montenegro, Clara Nunes e Chiquinha Gonzaga; entre cientistas, como Nise da Silveira e Naíde Teodósio; pintoras como Tarsila do Amaral; políticas como Zuzu Angel, Marielle Franco e Dilma Rousseff; e educadoras como Anita Paes Barreto e Gilda de Mello e Souza. Essas e outras mulheres que fizeram história da vida que lhes foi dada viver, suscitando nossa admiração, espanto, quando não inveja.
Nesses relatos, o estilo do jornalista - direto e não raro coloquial - denuncia o profissional atento à narração do fato tal qual testemunhas anunciavam, contemporâneo de histórias, do que se leu e se viveu. Aluízio relata os feitos, mas também conversas que ouviu ou imaginou, de prisioneiros da época de Getúlio. Da ditadura militar, do que se encontra nos pátios de prisões, em conversas de encarcerados como Nise da Silveira com Graciliano Ramos; das desavenças entre artistas como Tarsila e Oswald; relatos recolhidos de ideias ou de simples fatos corriqueiros da realidade mais banal de cartas ou conversas entre amantes.
Desde a introdução, Aluízio analisa a retórica do discurso feminista que vem conquistando largos espaços na sociedade, na qual o machismo, "esta vergonha comportamental", segundo suas palavras, se opões a uma grande revolução de costumes: um bom combate.
Aluízio faz um levantamento da história das mulheres, desde a Idade Média na qual eram vistas "como o primeiro animal doméstico do homem"; passando pelo século X, quando sacerdotes e sábios duvidavam que elas tivessem alma; pelo início do século XX quando as sufragistas conquistaram, na Inglaterra, o direito de voto; até chegar à Segunda Guerra Mundial, na qual as mulheres substituíram a mão de obra masculina que se encontrava nos campos de batalha.
Desde então muitas canções me línguas diversas condenaram o machismo. Aluízio pensava colocar como título do livro a expressão 'Deus é mulher", mas desistiu, pois as virtudes femininas nem sempre justificavam a expressão. Concluiu, então, que guerreira era a palavra certa. Essa palavra identifica, hoje, a mulher que combate por uma causa, sem necessidade, forçosamente, de armas. As guerreiras de Aluízio lutam, cada qual ao seu modo, com fé no futuro, daí a expressão guerreiras da esperança . Embora Clarice Lispector tenha escrito que "até agora o que a esperança queria de mim era apenas escamotear a atualidade", os caminhos encetados pelas guerreiras que Aluízio retrata foram diversos: educação, ciência, teatro, pintura, política, música, artes em geral. Elas buscavam a igualdade com seus parceiro no ofício de viver. E, assim, Aluízio termina sua introdução ao livro rogando que esta meta se cumpra: "Deus é mulher? Que assim seja como na Terra como no Céu".
O primeiro personagem estudado no livro é a doutora Nise da Silveira. Seu encontro com Graciliano Ramos, em 1953, é um interessante registro que o escritor alagoano relata no primeiro volume de Memórias do Cárcere. Um encontro sobre o qual Nise declara: " foi uma grande experiência humana: Graciliano e eu fomos muito amigos, era uma dessas especialíssimas, raras amizades nas quais as pessoas se comunicam de verdade". E acrescenta:
Nunca achei Graciliano um sujeito esquisito como diziam alguns (...) na casa de correção onde o conheci de perto, Graciliano vivia a cadeia arbitrária na maior serenidade, nunca o vi inquietar-se sobre a possível hora da liberdade. Não se assemelhava a estes viajantes que, no trem ou no avião, agitam-se em incessantes movimentos improdutivos e perguntam a cada instante: quando chegaremos. Graciliano parecia um velho embarcadiço que não se importasse se o porto de desembarque estava perto ou longe. Foi por isso um companheiro ideal de prisão.
Nós todos conhecemos a luta de Nise em prol dos doentes mentais. Sua luta pela utilização da arte como elemento de cura daqueles pacientes. Aluízio Falcão conta igualmente o encontro de Nise com Jung. E fala da criação do que ela chamou "a casa das palmeiras" e que um de seus pacientes descreveu em belos verso:
Casa das Palmeiras
na Pátria dos sabiás.
Se a doença voltar,
se a loucura voltar,
não me feches tuas portas,
ó casa materna,
útero alcatifado de minha mãe.
Acolhe-me caridosamente,
deixa-me viver os últimos dias
na companhia
dos meus irmãos mais simples,
Os renegados.
Os bem-aventurados.
Que eu fique com eles
em convívio amoroso,
até que chegue o sono
em que a poesia acaba.
Nise deixou uma autobiografia em que descreve seu combate contra métodos adotados pelos psiquiatras ortodoxos. Poucos dias antes de morrer, ela dizia "você tem de cair nas mãos dos médicos, os médicos querendo fazer coisas para prolongar a vida que já acabou praticamente. Horrível. Tenho muito medo. Eu digo: pelo amor de Deus, nunca me levem para uma CTI, mas eles levam.
No final do perfil de Nise, Aluízio lembra que o Brasil não a esqueceu, como se percebe na homenagem que lhe fez a escola de samba Acad6emicos do Salgueiro. Entre as outras guerreiras do livro, encontramos Anita Paes Barreto, educadora e encorajadora atuante no governo de Miguel Arraes, no chamado Movimento de Cultura Popular (MCP). Aluízio descreve em detalhes a atuação de Anita na preparação profissional das mulheres pobres, nos ramos de "culinária, costura, além de alfabetização".
Entre artists, no livro de Aluízio, estão Clarice Lispector e Tarsila do Amaral. Também se fazem presentes vítimas da ditadura, como Eunice Paiva e Zuzu Angel, que ele classifica como duas mulheres de verdade sendo a última celebrada por Chico Buarque na canção Angélica, na qual o compositor entoa: "quem é essa mulher".
Tarsila é mostrada em suas obras em suas desavenças com Oswald de Andrade. Fernanda Montenegro é lembrada em sua extraordinária atuação como atriz, no que Aluízio chama de "encantadora autobiografia. Do livro de Fernanda, Aluízio retoma o epílogo: "tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável, o que lamento é a vida durar apenas o tempo de um suspiro". Expressão que Fernanda retoma de Anne Philippe, a viúva do ator Gerard Philippe.
Entre as mulheres inteiramente entregues à politica, Aluízio nos apresenta a primeira mulher presidente do Brasil, Dilma Rouseff, que foi enquadrada na lei de segurança nacional da ditadura militar, conforme escreveu um juiz em São Paulo que a batizou de "Papisa da Subversão". Sua biografia encerra este livro de Aluízio, com a expressão de Kamala Harris "esperamos que não seja a última".
O livro de Aluízio, então, se lê como um romance, e do jornalista, oscilando entre o real e o imaginário, é um deleite para o leitor.
Prefácio de Luzilá Goncalves, para o livro As Guerreiras da Esperança, Aluízio Falcão. Ed. CEPE, Recife 2022. Págs. 9-11
Onde encontrar o livro:
Comentários
Postar um comentário
comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.