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Continuamos Idiotas Sentados em Barris.

Há quatro anos,  impressionada com nossa capacidade de ficarmos apontando defeito nos outros, criticando o buraco no casco de barco do outro quando o nosso também está furado e vamos todos afundar, postei  Ruth Rocha Para Adultos.  Hoje continuo vendo que apesar de estarmos todos nós vitimados pelas mesmas coisas, perdemos tempo em criticar o outro, o colega de infortúnios, enquanto somos levados juntos ao mesmo caos social. Continuamos idiotas sentados em barris. Trouxe, por isso, a história completa. Só ela, sem análise alguma.

Dois idiotas sentados: 
O Teimosinho e o Mandão; 
Muito bem acomodados, 
Com suas velas na mão. 
Cada qual no seu barril 
De pólvora recheado,
Começam, num tom gentil,
Cada qual mais educado...


     - Ó seu Teimosinho, não é por nada não, mas será que Vossa Senhoria poderia apagar essa sua velinha?
     - Muito bem, Excelência, muito bem... Mas poderia Vossa Excelência me dizer por que estaria a minha velinha incomodando Vossa Excelência?
     - Pois não vê Vossa Senhoria que esta velinha pode se constituir num perigo para a minha propriedade? Já pensou que a sua velinha pode, naturalmente sem que Vossa Senhoria tenha culpa. sua velinha pod pôr fogo no meu barril de pólvora?
     - Desculpe, Excelência, mas... e a sua velinha não pode botar fogo no meu barril de pólvora?

Dois idiotas sentados,
Agora muito espantados,
Cada qual no seu barril.
Uma vela em cada mão,
Educados mas não tão...
Numa ameaça sutil...

     -Cavalheiro, quer ter a bondade de apagar sua velinha, que eu já estou ficando nervosinho?
     - Cidadão, os direitos são iguais! Por que é que eu tenho de apagar minha velinha enquanto que o senhor continua com a sua acesa? Por quê? Por quê? E por quê?
     - Ora essa, cavalheiro, porque sim! E se o cavalheiro não apagar sua velinha bem depressa...
     - O quê? pergunto eu. O que fará o cidadão, pergunto eu?

Dois incríveis idiotas:
O Teimosinho e o Mandão.
todos dois estão sentados,
Com suas velas na mão.
Só que os dois estão sentados,
Muito bem acomodados,
Cada qual em seu barril;
E os barris bem atochados,
De pólvora recheados,
Numa disputa pueril...


     - Olha aqui, rapaz, se você tivesse atendido por bem, muito bem. Mas já que não me atendeu, agora eu quero, compreendeu? eu quero que você apague já essa velinha. E além disso, não estou gostando nada da cor da sua roupa. Acho que era melhor mudar de roupa também.
     - Mudar a cor da minha roupa? Você está é mais louco! E por que é que não está gostando da minha roupa? Ora essa! pois eu também não gosto da cor da sua roupa. E vá querendo que eu apague a minha vela! EU, compreendeu vem, EU é que quero, que EXIJO, que você apague já e já essa droga de vela que você tem! E faço questão, entendeu bem, faço questão de que você mude a cor desta porcaria de roupa que você está usando!

Dois idiotas muito tolos,
Com suas velas na mão.
Cada qual mais furioso
E cada qual é mais mandão!
Cada qual é mais teimoso,
Cada qual é mais machão!
Cada qual mais corajoso,
Cada qual faz mais pressão.
Se um ameaça dar tapa
O outro dá beliscão.
E se um dá pé d'ouvido
O outro dá bofetão.

     -Ah, é, seu cretino? Se você não parar já, já com estes beliscões EU é que jogo a minha vela no seu barril.
     - Olha aqui, seu bestalhão, se você não parar já já com estes tapas eu jogo a minha vela no seu barril de pólvora!


Dois idiotas sentados
E etcétera e tal...
Não podem fazer as pazes
No fundo do seu quintal.
Brigam por causa das velas:
Um briga federal!
Implicam com a cor das roupas:
uma implicância infernal!
Provocam cada vizinho:
De um jeito que não é normal!
E vão ajuntando pólvora,
Vão ajuntando um arsenal.

     - Filhos meus - grita o Teimoso -, tragam logo para cá os foguetes de São João que eu guardei lá no fundo do porão!
     - Meus filhos - o Mandão grita -, tragam já para cá aquele saco de estalos que eu guardei no quartinho os fundos!
     - Filhinhos meus, filhinhos meus! - berra o Teimosinho -, tragam já já todos os fogos que os primos guardaram no sótão da casa deles.
     - Meus filhos! - torna a gritar o Mandão -, peçam para o vizinho trazer pra cá aquele monte de bombinhas que ele ajuntou no fundo do quintal dele!

E assim os dois idiotas,
Com suas velas na mão,
Foram ajuntando bombas,
Ajuntaram uma coleção!
Os coitados dos seus filhos
Já sentiam aflição.
Não podiam trabalhar
Viviam num tensão!


Dois idiotas sentados, 
Com suas velas na mão,
No fundo do seu quintal,
Mas em cima de um vulcão.

E assim os dois vão brigando,
Na maior animação.
Desaforos, xingamentos,
A maior provocação!

Mas de repente, que coisa!
Deu grande espirro o Mandão!

O Teimoso leva susto,
Levanta de supetão!
A vela que estava acesa,
Dá um pulo de sua mão...
E cai no barril do outro.
Ouve-se grande explosão!

CATRAPUM!!!

As faíscas saltam longe,
Põem fogo no quarteirão!
Explode o barril do outro,
Ninguém teve salvação! Lá se vão os dois valentes
Como fogos de São João!

Lá se vão dois idiotas:
Era uma vez um teimoso,
Era uma vez um mandão...

Fonte: Dois Idiotas Sentados Cada Qual Em Seu Barril, Ruth Rocha, Ilustração Jaguar
Ed. Nova Fronteira 1994



Comentários

  1. Muito bom, Regina! Conheço muito idiotas. Talvez mais agora, em que estamos neste mundo de polaridades. Adorei! Obrigada!

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