Luciano de Mello y Goya murmurou:
— Bem‑aventurado aquele que prefere morrer com o coração varado de chumbo do que de saudade.
O criado, que o acompanhava, atribuiu‑a à febre, cuja inclemência havia semana e meia o consumia, mas o velho governador nunca estivera tão lúcido, desde a hora em que subira a bordo do paquete real, como naquela manhã de Novembro 7, a meio do Atlântico, a caminho da Europa. Nos ouvidos ecoavam‑lhe ainda as palavras do capitão Rodolfo Cóias, líder da milícia destacada para tomar a capital da ilha de São Cristóvão, depois de o informar do fim do Império em terras de São Miguel do Pacífico:
— Porto Negro é uma mulata da beira do cais, D. Luciano! Não nasceu para usar espartilhos, mas para andar nua por baixo da cambraia.
Por entre a névoa da última hora, a imagem era clara aos olhos de D. Luciano. Não bem uma mulata, como dissera o guerrilheiro, mas uma negra de braço estendido, que ele, por mais força que fizesse, não conseguia agarrar. Treze dias depois de ter abandonado a baía de Porto Negro sob a mira do regimento independentista, o corpo do último governador colonial era amortalhado, benzido e lançado ao mar.
Nas latitudes dos trópicos, mais do que em qualquer outro ponto da Terra, o calor bule com os corpos como pouca coisa se atreve, mas em nenhum outro lugar tanto quanto em Porto Negro. Fundada na orla de uma baía recôndita, ligada ao mar por uma estreita passa‑ gem aberta entre as rochas, Porto Negro é uma cidade quente, cuja proximidade do oceano não refresca. As montanhas altas em torno da baía impedem o vento de desabafar o ar e só de quando em quando uma aragem irrompe pela boca da barra para regalar aos corpos um alívio discreto, como um beijo de mar. Conhecida entre os marinheiros do mundo como a Cidade do Amor Vadio, Porto Negro tem a febre do desejo entranhada no ventre e dá‑se a quem chega com a verdade de uma fêmea entregue ao prazer só porque o calor lhe dá. Refúgio de piratas, estaleiro naval, zona franca e, em seus tempos de glória, um dos principais empórios da costa leste do Pacífico, Porto Negro foi sempre um lugar de passagem… Mas quem chega não parte sem a promessa de voltar.
É na beira do cais que a cidade amanhece. Apagado o farol do cabo, assomam os primeiros barcos. Na praia, de mãos sobre os olhos, as mulheres dos pescadores enxotam a viuvez do coração. Vivem à espera do dia em que a manhã não lhes traga o homem que todas as noites as deixa sozinhas para ir roubar o mar. Um pouco antes das sete, a sereia do porto dá permissão aos pilotos para começarem a trazer navios para a barra e os trabalhadores da doca surgem, de todos os lados, por barbear. Compondo‑se o chão do mercado de toldos e bancas, quando os sinos da catedral acabam de bater as ave‑marias, já toda a praça do cais é um mar a ondular de gente. Descem a terra os primeiros marinheiros — rapazes novos, soprados dos quatro cantos do mundo — e as vendedeiras jovens apregoam mais alto, na linguagem doce do bom entender.
Atravessada a praça do cais, para lá das alfândegas e dos armazéns, abre‑se a cidade velha, um emaranhado de ruas apertadas e sujas, ladeadas de edifícios cansados, aos quais o tempo, o ar salga‑ do, o Sol e o desmazelo dos homens deixou com aspecto de mulheres decadentes. Tascas, bares, negócios vários, casas de afecto, pensões baratas, e uma mistura de linguajares e cheiros que só quem por ali vive ignora. Homens desocupados enchem as soleiras das portas, aguardentando os sentidos, fumando o tempo em cigarros baratos, que o trabalho é pouco e menos ainda a vontade de o fazer. Também as mulheres se sentam às portas, enteando conversas, catando os filhos - um de cada amor - que lhes escapam das mãos descalços, meio nus, no encalço de uma sombra, de um gato, de uma bola de bexiga, desaparecendo da vista no virar de uma esquina para aparecerem por outra, esguedelhados e sujos, em gargalhadas feitas da inocência de ser pequeno. À medida que o casario se afasta do mar, surgem os primeiros vestígios da cidade colonial. Mas é em redor da grande Praça dos Evangelistas — a que o povo chama dos Arcos — que se pode vislumbrar o que foram os gloriosos anos do Império, quando Porto Negro era rota obrigatória dos navios que cruzavam a linha do equador. Os edifícios públicos, gretados, falhos de tinta, desanimados, vão resistindo como podem na dignidade marmórea das damas fali‑ das. E se a Catedral de Santa Maria compensou com almas a quebra de oblações, a Casa da Ópera, que os independentistas transforma‑ ram em estrebaria, não resistiu à partida de D. Luciano de Mello y Goya, que a sonhou e cumpriu. Apenas um edifício em Porto Negro é alheio à passagem do tempo: o sombrio palácio que encima a colina da cidade — de onde o povo, por superstição, não se aproxima —, e do qual, se calhar em caminho, talvez se fale.
Entre o meio‑dia e as três, tudo abranda e amolece. É a hora mansa da sesta, a hora em que nada acontece; em que as sombras se encostam às paredes, ao fresco que resta; em que os corpos se me‑ tem em casa e o mundo desaparece. Chamam‑lhe a hora dos amores encobertos! A segunda parte do dia, embora mais curta, passa mais lenta, e quem bule mais duro anseia mais forte pelo último soar da sereia e pela primeira cerveja do dia, que nem em todo o lado as leis são secas. Ao cair da tarde, quando o Sol incendeia a boca da barra e os trabalhadores do porto se espalham pelos quatro cantos da cidade, ouvem‑se coros de vozes pelas ruas e, vindo dos bares, o romance das primeiras guitarras.
Desce a noite sobre a ilha de São Cristóvão e, no coração da cidade velha, acorda o Bairro Negro. Das varandas, das janelas, das portas, das esquinas, surgem mulheres pintadas, sorridentes, de carnes desenvergonhadas, atirando beijos, propostas indecorosas, promessas de céu aos primeiros visitantes: marinheiros, cáftenes, estivadores e toda a casta de pecadores cujos sonhos se apagam quando o dia amanhece. Também os maricas por ali giram. Sentados nas esplanadas ou deambulando pelas ruas — que aos homens não pertencem esquinas —, vão pescando intenções nos olhos dos passantes, trocando olhares com apreciadores de outros predicados, no código secreto dos amantes clandestinos. Concertinas e guitarras provocam, seduzem, incitando ao contacto, a beber, a dançar, e o calor — já se sabe — bule com os corpos como pouca coisa se atreve. Cheira a mar, a restos do dia, ao suor da vida dos homens e ao perfume das mulheres da vida. Aos poucos chegam dois e mais quatro, dez com mais vinte, até não haver quem falte, nem espaço para tanta gente. Enchem‑se as ruas, os bares, as casas de amor alugado, e a noite faz‑se festa até se embrulhar com o dia, até à hora indistinta em que nem uma coisa nem outra, até o arrastar ensonado ser comum a madrugadores e tresnoitados; até o Sol despontar no horizonte e a cidade recomeçar do zero, porque ele há coisas que não mudam nunca; porque é mais fácil inclinar o eixo da Terra do que endireitar a sombra de um pau torto.
Idas as famílias de quinze apelidos, Porto Negro despiu‑se de etiquetas e, pondo um vestidinho de nada sobre a pele tisnada, correu, descalça, para a beira do cais, onde o amor é livre e o amar descomprometido. Como disse o capitão Rodolfo Cóias, por outras palavras, não basta uma coroa para fazer rainha uma mulata dos trópicos. Quiseram‑na Jóia do Pacífico, mas será para sempre a Cidade do Amor Vadio, onde os navegantes do mundo chegam e par‑ tem, trazendo histórias, fazendo História, levando histórias. São muitas as que se contam entre homens do mar e donzelas da terra, e diz‑se não haver uma só família, em toda a cidade, sem um filho da maré, que assim se foi chamando, no passar das gerações, aos frutos dos amores entre mareantes de passagem e sonhadoras de ver passar. Mães avisam filhas, como suas mães as avisaram a elas, desde muito cedo e pela vida fora, que amor de marinheiro é fogo de palheiro. Mas nem os avisos serviram algum dia senão para aliviar quem os dá, nem quem os ouve se lembra deles na hora do fogo à palha. Não acabam todas grávidas — que nem sempre o amor pega de estaca —, mas, porque os marinheiros são mais do que as marés — embora o dito o contradiga —, sempre amanhece o dia em que vem à luz mais um rebento da mareagem, ou do mareio, que para o caso dá no mesmo. Uma rara atracção há nos homens de mil portos, nos homens de mil histórias, nos homens de mil mulheres. Porém, de entre todas, há uma história que ainda hoje se conta na beira do cais, nas ruas escusas da cidade velha, pelos arcos da praça colonial. Chamam‑lhe O Pecado de Porto Negro. Alguma coisa teriam de lhe chamar.
O Pecado do Porto Negro, Norberto Morais, Ed. Leya 2015, págs. 7-10
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