Sábado eu vou ao teatro - decidi ferozmente, ao saltar do ônibus em frente a uma agência teatral de Londres. Há meses que prometo à minha mulher levá-la ao teatro - só me lembro de comprar ingresso quando a peça a que ela gostaria de assistir já saiu de cartaz.
Entrei impávido agência adentro:
- Dois para sábado: The Killing so Sister George.
Saí com dois ingressos no bolso. Sentia-me um herói: sábado nós iríamos ao teatro para saber que matou a irmã Geórgia.
No sábado avisei minha mulher, displicente:
- Hoje nós vamos ao teatro.
Não quis acreditar: achou que era "uma das minhas". Tive de exibir os ingressos. Teatro de Londres, começa às sete e meia - o que, de si, não é uma coisa séria. Eram seis horas quando regressamos de uma visita. Havia tempo de sobra.
Fomos recebidos pela empregada, o marido da empregada, a filha da empregada, a irmã da empregada, por ela convocados, verdadeiro comício de portugueses, entoando lamentações, como todo um elenco teatral no momento máximo de terceiro ato:
- Seu doutor! Já chamamos o socorro, não podem vir, seu doutor.
O socorro, pelo telefone 999: apenas polícia, assistência ou bombeiros. Nenhum deles falava inglês, o que eles queriam com os bombeiros? Não vá me dizer que é para consertar cano furado.
Era.
Entramos pelo cano. A água, jorrando do sistema de aquecimento num quarto do segundo andar, infiltrava-se pelo soalho e começava a gotejar no forro da sala. E o forro da sala, de papelão e gesso, como nas demais casas inglesas, já apresentava uma enorme barriga de pelo menos nove meses.
Entrei em brios, assumi o comando.
- Bacias e panelas para as goteiras. Antes que isso vire uma piscina. Localizar o registro geral de água. Toalhas para cobrir o chão. Retirar moveis e o tapete. Saiam de baixo, que esse teto acaba desabando. Vamos, mexam-se.
Percorri todos os cantos e desvãos da casa, como um general, seguido do meu exército lusitano. Não encontrei o registro geral da água em parrte nenhuma: nem debaixo da escada, nem na cozinha, nem no banheiro.
Resolvi subir no forro do segundo andar, pelo alçapão: uma mesa, uma cadeira em cima da mesa, um banquinho em cima da cadeira.
- Você está maluco! Vai cair daí, meu Deus.
- Seu doutor! seu doutor! - a comparsaria fazia coro, torcendo as mãos.
À custa de um galeio, que ainda hoje me dói nos quartos, consegui penetrar naquele mundo estranho, como o casco de um navio abandonado, que é o sótão de uma casa inglesa. Encontrei caixa-d'água, mas não encontrei onde fechar a água. Voltei para meu espavorido mundo doméstico, depois de ficar dependurado no teto como um enforcado, os pés buscando apoio nos membros portugueses. Ah, minha roupa de ir ao teatro.
De súbito, um fragor lá na sala: parte do forro acabava de desabar. Pensaram que eu estava brincando? Fomos correndo ver. A água cobria o chão. Mas ainda dava pé.
- É preciso fazer alguma coisa. Antes que a casa caia.
Fazer o quê? O vazamento se dava entre o soalho e o forro, não havia acesso possível. Onde descobrir um bombeiro em Londres, num sábado à noite? Todos certamente, haviam ido passar o fim-de-semana na sua casa de campo.
- "Bombeiros, Serviço de Emergência - recitou minha mulher lá da sala, acocorada dentro d'água junto ao telefone, catálogo aberto ao colo. As crianças acordadas com o tumulto, se embaraçavam nas minhas pernas, maravilhadas com as goteiras.
- Não podemos ir aí - respondeu-me a voz ao telefone, depois de um século. A menos que o senhor seja sócio. O senhor é sócio?
Eu não era sócio. Garantiram-me que, dpois de preenchido o formulário, que me enviariam pelo correio na segunda feira sem falta, e pagar a minha taxa de inscrição eu seria atendido me menos de quarenta e oito horas. Asseguraram-me que era um serviço do gênero em toda a Inglaterra. Daí precisar ser sócio.
Nova busca pela casa e fora dela, desta vez obstinada e furiosa:
- Deve haver um lugar de fechar: uma torneira, uma válvula, um maldito registro geral.
O resto do forro começava a engordar, ameaçando cair. Eu já temia pelas camas e armários do quarto superior: dentro em pouco viriam abaixo com o soalho, já descarnado, seus negros ossos de madeira exposto, os fios elétricos à mostra, como tendões.
Era um pesadelo, do qual eu certamente ainda despertaria, em tempo de ir ao teatro. Minha mulher, obcecada pelo telefone, tentando delegacia local, os serviços da municipalidade, as autoridades constituídas.
Às dez horas da noite bateram à porta. Fui abrir, e a água escorreu para a rua. Dei com um velhinho de farda preta, surrada, a me olhar como se fosse o meu próprio anjo-da-guarda, cansado de zelar por mim: era o homem do serviço de água do bairro, localizado pelo telefone. Correu os olhos ao redor, sacudiu a cabeça, desalentado, e tornou a sair resolutamente. Cheguei a pensar que esivesse indo embora. Dirigiu-se ao apartamento existente no porão. Em pouco voltava vitorioso:
- Fechei o registro. É no vizinho de baixo.
- O registro era n o vizinho: vê quem pode.
- O senhor fica sem água até eu mandar o bombeiro.
Fiquei sem água até que ele me mandasse o bombeiro. Na segunda-feira ele mandou o bombeiro. Ficou faltando apenas restaurar a feia chaga do teto, e isso seria novo dramalhão. Caía o pano, eu voltava a vive seco, eis o que importava.
Mas até hoje não sei quem matou a irmã Geórgia.
Caricatura: LiberatiElenco de Cronistas modernos. 3 ed. pags.62-65)
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