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Menino do Mato, Poema I, Manoel de Barros

Desenho de Martha Barros
 I.

Eu queria usar palavras de ave para escrever.
Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação. 

Ali a gente brincava de brincar com as palavras
tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!
A Mãe que ouvira a brincadeira falou:
Já vem você com suas visões!
Porque formigas nem têm joelhos ajoelháveis 
e nem há pedras de sacristia por aqui.
Isso é traquinagem da sua imaginação.
O menino tinha no olhar um silêncio de chão
e na sua voz uma candura de Fontes.
O Pai achava que a gente queria desver o mundo
para encontrar nas palavras novas coisas de ver
assim: eu via a manhã pousada sobre as margens do
rio do mesmo modo que uma garça aberta na solidão de uma pedra.
Eram novidades que os meninos criavam com suas palavras.
Assim Bernardo emendou nova criação: Eu hoje vi um
sapo com olhar de árvore.
Então era preciso desver o mundo para sair daquele 
lugar imensamente e sem lado.
A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas pela inocência.
O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias
para a gente bem entender a voz das água e
dos caracóis.
A gente gostava das palavras quando elas perturbavam
o sentido normal das ideias.
Porque a gente também sabia que só os absurdos
enriquecem a poesia.

Em: Menino do Mato,Ed. LeYa, 2010, págs 9-10

 

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