Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de fevereiro, 2021

O Sim e o Não, Francisco Azevedo

     Nossa língua tem coisas engraçadas. Exemplo? Aqui, no Brasil, não damos o sim como resposta. Damos o verbo. Você lembra o que aconteceu? Lembro. Quer lembrar mais? Quero. Sae o que isso significa? Sei. E por aí vai sem nunca pronunciarmos um único sim. Com a negativa é diferente. Dizemos não e pronto. Você lembra do que aconteceu? Não. O não é imediato, preciso, definitivo. O sim se omite. O não se impõe. Cismo. Se até no gesto o sim vem antes do não. O recém-nascido, primeiro, diz sim ao peito. Só depois, farto, diz não. Vou mais fundo e me dou conta de que o sim é movimento para cima e para baixo. O não é movimento para os lados. Por isso, para bem ninarmos um bebê, é preciso balançá-lo de leve com sins e não alternados. Ao se familiarizar com os dois polos, ele dormirá tranquilo. Aprendi essa lição nas madrugadas que passei com o Nuno e a Rosário. Vou adiante, descubro possibilidades. A paixão diz sim. A castidade diz não. A tentação diz sim. A virtude diz não. A saúde diz sim.

O Macaco e a Viola (Histórias à Brasileira)

     Antigamente, a cutia tinha rabo mais comprido que o macaco. um dia, os dois estavam na beira da estrada conversando e o rabo dela estava estendido no chão. Veio uma charrete, passou por cima e cortou fora. A cutia ficou cotozinha e começou a chorar:      - Ai! Buá, Buá...      Tem dó       fiquei cotó.      A charrete era de um fazendeiro, que ficou com pena da coitada. E prometeu dar um saco de ouro para compensar o rabo cortado. E disse que todo dia ia mandar dar comida para ela no terreiro da fazenda. E que ia deixar uma mata inteirinha nas terras dele para a cutia correr e fuçar quanto quisesse. Ela podia passar o dia inteiro catando frutas e raízes para comer. Ninguém nunca ia caçar por lá.      A cutia topou, parou de chorar e lá se foi, toda pimpona na charrete com o fazendeiro, receber seu ouro, sua comida e sua mata.      O macaco ficou pensando naquilo. Achou que a cutia tinha feito um ótimo negócio, que rabo devia ser que nem galho de árvore, que a gente poda e depois v

Bateu Vontade de Ler: Deixem Falar As Pedras, Davi Machado

     Não bastasse a fila de livros que tenho para ler, fui apresentada por minha filha e esse autor português de quem nunca tinha ouvido falar.  Vício em livros e curiosidade são uma combinação perfeita. Bateu vontade de ler e, que breve vou na casa dela buscar em prestado.  Que jeito? Esse livro é sobre verdade, mas não necessariamente A verdade. Um velho talvez já caduco conta uma história de décadas passadas para um adolescente que talvez esteja, mentalmente, exagerando tudo que ouve. Talvez. . Deixem Falar as Pedras pergunta quantas verdades podem existir. O que os fatos significam para cada pessoa, como cada um os entende, as diferentes possíveis interpretações da mesma história, e como a memória (afetiva ou real) pode mudar tudo. . O velho conta ao neto o passado ocorrido durante a ditadura em Portugal. Daí, como nós sabemos bem, entram em jogo também as mentiras fabricadas e as versões mal contadas que movem regimes assim. . O que realmente aconteceu? Temos que ler até a última

O Que Estou Lendo?

 A Organização.  A Odebrecht e o Esquema de Corrupção Que Chocou o Mundo , Malu Gaspar Estou exatamente na página 303(imagem)      Quando aquele jovem empresário apareceu nos noticiários como um grande vilão eu tomei um susto.             Mentalmente tinha muitas perguntas que gostaria de fazer. Não pude obviamente, mas guardei uma imensa curiosidade sobre a Odebrecht, que eu julguei, por muito tempo, ser somente uma grande construtora. Foi com grande expectativa, então, que aguardei o lançamento do livro que se propunha contar a história da empresa. Não conhecia a autora.  Comprei o livro que venho lendo aos poucos  diariamente.       Não é divertido, pelo contrário. Entristece saber da pouca qualidade ética de nossos políticos. É decepcionante ver como e porque foi construída uma arena de futebol por exemplo e como um jovem, provavelmente inteligente e capaz, em menos de 3 anos torna-se um empresário rico só porque o pai quis que fosse patrocinado. É um livro pra quem tem coragem de

Crônica em Quadrinho

  Do Instagram.  Não sei o autor.

Cerimônia Matinal, Ladyce West

Lá vêm as maritacas outra vez fazer minha janela de palanque. Aproveitam a manhã ensolarada empoleiram-se no estreito parapeito e começam a algazarra habitual. Cinco mocinhas turbulentas, faladeiras começam por medir o janelão desfilando como numa passarela fila indiana, requebrando em cortejo. Vão e voltam, voltam e vão bem circunspectas cobrindo a extensão do peitoril e desengonçadas, escorregam no granito. Ao final do ritual extravagante postam-se juntas, bem-dispostas e falantes, na beirada da janela de onde as vejo. Uma conversa, outra responde; uma resmunga, outra palpita. Se alguém uma interrompe, outra replica impulsiva. O que contam umas pras outras animadas? É debate, mesa-redonda ou controvérsia? Sem aviso, inicia-se um conflito. Como se xingam umas às outras é mistério. Se se entendem, ninguém sabe ou saberá. Papagueiam incansáveis depois passam pros murmúrios dos cochichos vão às queixas e gemidos para no fim parecerem apaziguadas indo pra casa, no edifício que habitam c

Prezado Sargento. Marcelo Valença

Há pouco mais de três semanas nos conhecemos. Você trouxe um olhar de dúvida que encontrou meus ouvidos cansados. Dois noctívagos desconhecidos num canto qualquer nos fundos de um prédio caixão. Você podia passar por mim com um grunhido qualquer de cumprimento desinteressado, ao qual eu devolveria um arrulho por mera educação. Estou beirando os quarenta e você tem cara de sessenta. Já tivemos tempo suficiente nesta vida para desenvolver aquela camaradagem fática a que todos os homens das nossas gerações foram paulatinamente treinados. Barulhos pré-históricos que demonstram como podemos ser desimportantes uns para os outros. Mas você puxou uma pergunta. Quer saber como funciona o aplicativo do governo para ter a carteira de habilitação digital no celular. Tudo bem, entendo. Seus cabelos brancos te fazem mais velho que minha calvície e o instinto de ajuda aos idosos já me compele a interromper o vídeo genérico a que eu assistia e abrir o aplicativo no meu celular. O seu é Android

A Leiteira e o Balde de Leite, Fábula de Esopo

      Joana, carregando na cabeça um balde de leite, dirigia-se rapidamente para a aldeia. A fim de andar depressa, tinha posto uma roupinha ligeira e sapatos bem cômodos.       Ia leve como o vento. Em seu pensamento, já estava vendendo o leite e empregando o dinheiro.       – Compro cem ovos e ponho para chocar. Posso muito bem criar pintos ao redor da casa. Quando crescerem, vendo todos e tenho um bom lucro.      Com esse dinheiro, compro um leitãozinho. Em pouco tempo, terei um porco bem gordo, pois só comprarei o leitão se já for gordinho. Cobro um bom preço pelo porco e compro uma vaca. Terá que vir acompanhada de seu bezerrinho. Será uma graça vê-lo saltar pelo quintal. Joana, entusiasmada, saltou também. O balde caiu de sua cabeça e o leite derramou-se no chão. Adeus bezerro, vaca, porco, leitão, ninhada de pintos!       A pobre Joana voltou para casa e com medo que o marido brigasse com ela.      – É fácil fazer castelos no ar – pensava. – mais gostoso. Na minha imaginação, p

Primeira Página: A Organização, Malu Gaspar.

 Prólogo      Na cadeia tudo muda. Na cadeia onde estava Marcelo Odebrecht, mais ainda. Cada um de seus companheiros da ala no Complexo Médico-Penal do Paraná, ou CMP, integrava um capítulo da história do dinheiro sujo que irrigou os governos recentes do Brasil. Eram ex-ministros, lobistas, empreiteiros, ex-deputados. Atrás das grades, adquiriam nova feição. Inimigos tornavam-se parceiros, subalternos convertiam-se em líderes, homens fortes desabavam diante de problemas comezinhos. Ali, mais do que cargo ou do que o tamanho da conta bancária, o que valia era saber como conseguir a troca de uma lâmpada, conquistar a boa vontade do carcereiro ou convencer os outros a ajudar na limpeza da cela. Para sobreviver era preciso mudar. - e talvez até entregar antigos companheiros à justiça.      Só Marcelo, o mais célebre e poderoso deles, continuava o mesmo. O mor empreiteiro do Brasil, workaholic assumido, mantinha lá dentro os hábitos cultivados do lado de fora. Acordava de madrugada para gin

Crônicas na M.P.B: E.C.T - Voz: Cássia Eller

Tava com cara que carimba postais Que por descuido abriu uma carta que voltou Levou um susto que lhe abriu a boca Esse recado veio pra mim, não pro senhor Recebo o crack, colante Dinheiro parco, embrulhado Em papel carbono e barbante Até cabelo cortado Retrato de 3x4 Pra batizado distante Mas isso aqui, meu senhor É uma carta de amor... Levo o mundo e não vou lá Levo o mundo e não vou lá Levo o mundo e não vou lá levo o mundo e não vou Mas esse cara tem a língua solta A minha carta ele musicou Tava em casa a vitamina pronta Ouvi no rádio a minha carta De amor Dizendo: Eu caso contente Papel passado e presente Desembrulhado o vestido Eu volto logo, me espera Não brigue nunca comigo Eu quero ver nosso filho O professor me ensinou Fazer uma carta de amor Levo o mundo e não vou lá Levo o mundo e não vou lá Levo o mundo e não vou lá levo o mundo e não vou Tava com cara que carimba postais Que por descuido abriu uma carta que voltou Levou um susto que lhe abriu a boca Esse recado veio pra

Acabei de ler: Doce Gabito, Francisco Azevedo

  Se na hora extrema do vamos ver nem pessoas centradas demonstram tanta firmeza, que dizer de mim, que já nasci sob o signo do devaneio e do desvio? Desde menina, vivo em planos paralelos - por alienação, mecanismo de defesa, sei lá. É assim que sobrevivo. Religiões, aceito, mas não as tenho. Monges, sacerdotes, rabinos, pastores, médiuns e mães de santo. Oráculos, videntes e cartomantes. Respeito todos os que  pela erudição ou intuição, ousam trabalhar como intermediários do Desconhecido. Mas meu caminho é bem outro. Falo como sonhadora incurável que, bênção ou maldição, perambula entre o Olimpo e o Hades, bebe de todas as fontes e prova todas as águas que correm por aí, turvas ou cristalinas. Todas em movimento. Água parada, nunca. E desse modo deverá ser até o fim. Fim?  O "morreu, acabou" dos ateus é muito cômodo. A verdadeira paz eterna. Quem será capaz de inventar descanso maior?  O relax definitivo! O meu medo é que, distante da complexidade da vida, a morte não seja

A Assembleia das Crianças Inadequadas, Antonio Neto

 In memoriam de Diolina Ribeiro da Silva      Éramos poucas na região, sete no total. Nos conhecíamos desde sempre. Quando éramos bebês, nos comunicávamos pelo olhar. Depois que crescemos mais um pouco, criamos estratégias para nos comunicarmos sem chamar a atenção das pessoas adequadas. Havíamos nascido em corpos inadequados ou na época inadequada: éramos as crianças inadequadas. A cidade jamais poderia nos entender ou nos aceitar plenamente. Nós sabíamos disso!      O Grupo Escolar “Água Vermelha” era o nosso ponto de encontro, porque estávamos espalhadas pelos bairros de Poá: Jardim Emília, Obelisco, Pinheiro e redondezas. Ao ingressarmos na escola, fizemos um forte pacto de proteção, pois éramos os alvos preferidos dos meninos que faziam maldades. Por meio de sinais e de um vocabulário próprio, mantínhamos contato sem despertar suspeitas sobre nós.      Em cada bairro havia um Protetor ou Protetora de crianças inadequadas: homens e mulheres que sabiam quem nós éramos e nos amparava