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O Pé de Flamboyant, o Mosteiro e os Fantasmas, Bernadette Lyra

Convento de São Francisco - Vitória ES
     Hoje estou meio que adormecida sobre o lado esquerdo do peito.O lado do coração. Mas não temam por mim, os preocupados. E os delicados que não se apoquentem. Não é nada grave, nada "da idade" como gostam de dizer aqueles que estão na tocaia, ansiosos para detectar os sinais de mazelas humanas. Nem é nada que o tempo me tenha trazido, como ele traz as dores na batata da perna quando o frio exaspera, ou o brilho de uma estrela que só na memória persiste, ou os fiapos de perfume de rosas encrespadas pelo vento do sul. É só uma lassidão que me rouba até a vontade de escrever uma crônica.

     Começou com uma batida lenta nas têmporas. Fechei os olhos embalada por esse batimento secreto e deixei que o silêncio como um fruto maduro pesasse. Então tudo rutilou como dentro de um cubo de cristal invertido.

     Como podem ver voc6es, que até no escuro enxergam fios pratados da literatura, é só uma lassidão, mas que nào impede que eu roube de mim mesma as palavras que já antes escrevi.

     Vamos jogar esse jogo de encontrar Wally, esse antigo jogo em que é preciso buscar as pistas no que é lido ou mostrado para achar um dado importante e principal. Vocês e eu, neste exercício que, aqui, toma a forma de aproveitamentos indébitos e roubos suspeitos. Que, no entanto, não causam dano à propriedade de outrem, uma vez que a furtada sou eu mesma.

     Antes, quero dizer que me comprazo com essas pequenas trapaças interiores, com esses raptos diminutos que faço. Enquanto isso, já chegou a noite. Vitória brilha lá fora. A cidade cintila em torno de minha janela e a noite está cheia de sombras dos ramos de um pé de flamboyant que se inclina no terreno do mosteiro de São Francisco. As luzes do posteamento atrás do flamboyant furam os galhos e vêm projetar ramagens na rua, por onde os fantasmas passeiam, sem ruido, com seus pés de lã.

     São esses fantasmas que cato, um por um, para dispor aqui, no arremedo de papel que é esta telinha de computador. E para oferecê-los a quem por eles possa se interessar.

     Interesse pelo que escrevo é coisa que sei que não é farta assim. Não se lê com tanta fartura o que escreve     uma pobre escrevinhadora. Porém uma geleia de diamantes invade-me os ossos, a cada vez que imagino o diminuto instante futuro em que alguém,com generosidade ou por acaso, venha a ler o que agora estou escrevendo. Me dá um arrepio na espinha. Me vem uma espiral de delírio e me sinto como personagem de Hitchcock, em Vertigo.

     Voltando à bincadeira que estabeleci, eu poderia ainda dar uma pista se descrevesse o lugar onde o Wally se encontra escondido, dizendo que é uma ilha que tem conformação de espinhaço de pedra, com variados picos redondos, cobertos de florestas entre as quais se exibem rochedos a olho nu. Ou dizendo que é ilha banhada por águas que circundam, alargando-se e apertando-se até o belo canal que se finda em uma angra.  Ou que ela se separa do continente, ao norte, por um braço de mar muito estreito e a leste abrem-se brandas praias de areia.

     Fico a imaginar quem vai descobrir que o nome de ilha é Guananira e talvez seja onde está Wally, a altura do texto. Muita gente já deve ter abandonado a leitura, por fastio ou por desencanto. E eu também começo a desistir, embora confesse que me apraz de estar sendo arremedo de um ouroboros.

     O ouroboros, voc6es sabem, é aquela criatura que se enrola em volta de si para engolir a própria cauda. Gosto de me comparar a esta imagem que me faz  lembrar a sagrada dança da vida e da morte, o eerno retorno e a evolução.

     Mas acho que eu já disse uma vez, e vocês já conhecem essa história.  Histórias duram mais que homens, pedras mais que histórias, estrelas mais que pedras. palavras de Sheherazada ao Califa Sharyar, na milésima primeira rodada.


Em: Guananira, Ed. Maré , 2021


Sobre a autora:

Maria Bernadette Cunha de Lyra (Conceição da Barra, ES) é escritora e professora universitária.

Licenciada em Letras pela UFES é doutora em Artes/Cinema pela ECA/USP e pós-doutora pela Universidade René Descartes, Sorbone, França

É escritora e professora universitária, nas áreas de literatura e cinema. Foi secretária de Cultura no Espírito Santo.


Livros de Bernadette Lyra:

  • As Contas no Canto (contos), 1981
  • O Jardim das Delícias (contos), 1983
  • Corações de Cristal ou A Vida secreta das Enceradeiras (contos), 1984
  • Aqui começa a dança (novela), 1985
  • A Panelinha de Breu (romance) Ed. Estação Liberdade, recriação parodística da lenda capixaba surgida a partir da história de Maria Ortiz, 1992
  • Memória das Ruínas de Creta, 1997
  • Tormentos Ocasionais, 1998
  • Tradução de Aden, Arábia, de Paul Nizan
  • A Nave Extraviada (não-ficção), 1995
  • O Parque das Felicidades (contos), 2009
  • A Capitoa (romance). 2014.
  • Fotogramas do Brasil; As chanchadas ( não-ficção) 2014.
  • Água Salobra (crônicas) 2017.
  • O Jogo dos Filme (não-ficção) 2018.
  • Ulpiana (romance) 2019.
  • Guananira (crônicas) 2019.



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