Eram vozes extremamente numerosas e de qualidades variadíssimas; umas para efeito profundos e solenes; outras leves e fúteis, risonhas e brincalhonas. E, entre esses dois pólos, elevam-se as de timbre sentimental e aveludado, as metálicas e épicas, as bravias e roucas, e uma infinidade de outras impossíveis de descrever.
numa avaliação um pouco abundante ( mas que são números, neses tempos de inflação?) calculei que havaria, naquele anfiteatro da noite, cerca de cento e vinte mil personagens arregimentados para um vastíssimo concerto vocal. Não sei por que me ocorreu tal cifra: mas foi assim.
O concerto principiou logo em seguid, e o vale todo repercutiu com sonoridade majestosa aquela estranha mensagem que me transportava para regiões e eras indeterminadas, porém, remotíssimas - se não do princípio do mundo, pelo menos, do princípio dos cães.
As prováveis cento e vinte mil figuras postadas na ordem devid ( que eu não via, mas adivinhava), obedeciam ao comando do maestro em ritmos complicadíssimos, e com matizes de sons que ora me recordavam as macumbas do Rio, a descerem das favelas ao sabor das brisas, ora me faziam pensar em músicas "bossa nova"ao se desfazerem com nostágicas ironias e a se desintegrarem em desarmônicas cadências por este vale da Aclimação.
Passamos toda a noite assim: os cães a cantarem e eu a ouvi-los. Na manhã seguinte, pareceu aos meus amigos não serem recomendáveis tais insônias, e ficamos na dúvida: se eu devia tomar um sedativo, para dormir, ou se os cães deviam beber alguns riachos de barbitúricos para não continuarem a cantar. um desses amigos propunha-se mesmo eliminar esses cantores noturnos, ao que vivamente me opus, embora reconhecendo-os um pouco exagerados. ( Mas eu sou contra quaisquer violências). Outro amigo anunciou-me também que já tinha banido ou exilado setenta dos concertistas ( suponho que para brincar comigo). Mas o que eram setenta, num grupo de cento e vinta mil? E os concertos foram continuando.
Certa manhã percebi, num terreno baldio das proximidades, à beira de uma horta, uns meninos com espingardas, Isso me assustou: estariam contratados para atirar nos cães?
E não avistei cão nenhum, por mais que passasse os dias à janela, procurando-os. Deviam dormir, àquela hora: sua vida era toda noturna, como a da maior parte dos artistas.
Mas depois, mesmo à noite, foram rareando. Jã não se ouviam aqueles poderosos solos, aqueles compactos coros, e sim alguma voz perdida, desarticulada, como um resto apenas, de todo aquele imenso clamor que antes de ouvira. Por onde andavam os cento e vinte mil figurantes dos grandes concertos ( subtraidos os setenta que os meus amigos deportaram para algum lugar)?
Soube depois que aqui em São Paulo se protestava contra a quantidade de cães existente em cada bairro; e imaginei que haveria por toda parte concertos id6enticos aos que me fora dado ouvir noites seguidas no bairro Aclimação. Talvez sejam artistas ambulantes, além de boêmios e noturnos, pensei. Talvez agora andem por outros lugares, mas sejam os mesmo; Talvez isto seja uma vasta organização, uma companhia, um grupo coral que passe, de noite em noite, de bairro em bairro, apresentando o seu repertório, que nós, humanos, por falta de conhecimentos especializados, não conseguimos entender e apreciar.
E, malgrado as passadas insônias, tive saudade desses cantores invisíveis, desses irmãos artistas, e meio sobrenaturais pouco inteligíveis, como os artistas costumam ser, e, no entanto, cumprindo seu destino, indiferentes à escuridão das horas, à solidão da terra, à opinião dos homens. Pois devia haver qualquer mensagem nos cães da Aclimação, para que eu, por sua causa, perdesse noites de sono, e agora, com saudade procure imaginar por que caminhos andarão.
Em: Ilusões do Mundo, Cecília Meireles
Ed. Nova Aguilar 1976, págs, 35-38
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