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Boca de Forno, Rubem Alves

     Boca e forno!   Forno! 

     Furtaram um bolo! 

     Bolo 

     Farão tudo o que seu mestre mandar? 

      Faremos todos, faremos todos, faremos todos 

     A gente brincava assim, quando era criança. O mestre cantava o refrão e os outros respondiam, repetindo a última palavra, como se fosse eco. Sempre perguntei sobre o sentido destas palavras e, por mais que me esforçasse, nunca encontrei sentido algum. É puro non sense e imagino que este brinquedo bem que poderia figurar entre os absurdos por que Lewis Carroll fez a pobre Alice passar nas suas aventuras pelo País das Maravilhas e No País dos Espelhos. Mas todo absurdo é apenas o avesso de uma coisa que parece lógica e racional, como o lado de trás de uma tapeçaria, escondido contra a parede. O absurdo é o avesso do mundo. Ai fiquei a me perguntar: “Este absurdo é o avesso de quê”? Veio-me, então, uma iluminação repentina: não deve ter sido por acidente que o inventor desta brincadeira, quem quer que tenha sido, deu o nome de mestre ao líder que canta o refrão, pedindo a resposta-eco-repetição das crianças. Ele deve ter sido arguto observador das escolas, daquilo que via acontecendo entre os professores e alunos. Mas sem coragem para dizer às claras aquilo que estava vendo, por medo da punição (o seu filho devia ser aluno de uma das tais escolas), inventou este brinquedo, como uma parábola. O que é, precisamente, o caso das loucas histórias de Lewis Carrol. Professor da Universidade de Oxford, via os absurdos que ali aconteciam. Mas se os dissesse em linguagem clara, certamente ganharia o ódio dos colegas e a ira das autoridades e acabaria por perder o emprego. Por isto, ele os disse de forma matreira, dissimulada: brincadeira de criança. No mundo das crianças, todos os absurdos são permitidos.

     Acho que esta brincadeira é uma repetição do que acontece nas escolas. As crianças são ensinadas. Aprendem bem. Tão bem que se tornam incapazes de pensar coisas diferentes. Tornam-se ecos das receitas ensinadas e aprendidas. Tornam-se incapazes de dizer o diferente. Se existe uma forma certa de pensar as coisas e de fazer as coisas, por que se dar o trabalho de se meter por caminhos-não-explorados? Basta repetir aquilo que a tradição sedimentou e que a escola ensinou. O saber sedimentado nos poupa dos riscos da aventura de pensar. Não, não sou contrário a que se ensinem receitas já testadas. Se existe um jeito fácil e rápido de amarrar os cordões dos sapatos, não vejo razão para submeter o aluno às dores de inventar um jeito diferente. Se existe um jeito já testado e gostoso de fazer moqueca, não vejo razões por que cada cozinheiro se sinta na obrigação de estar sempre inventando receitas novas. O saber já testado tem uma função econômica: a de poupar trabalho, a de evitar erros, a de tornar desnecessário o pensamento. Assim, aprende-se para não precisar pensar. Sabendo-se a receita, basta aplicá-la quando surge a ocasião. Senti isto muitas vezes, tentando pensar com minha filha problemas de matemática.

     É preciso confessar que isto já faz muito tempo, pois o que me restou de matemática já não me permite nem mesmo entender os símbolos que ela maneja. Claro que minha maneira de pensar era diferente da maneira de pensar hoje. No meu tempo ainda se cantava a tabuada. Mas o que me impressionava era a sua recusa de, pelo menos, considerar a possibilidade de que um mesmo problema pudesse ser resolvido por caminhos diferentes. Ela havia aprendido que há uma maneira certa de fazer as coisas e que caminhos diferentes só podem estar errados. A conversa era sempre encerrada com a afirmação: “Não é assim que a professora ensina ...” É como nos catecismos religiosos: o mestre diz qual é a pergunta e qual é a resposta certa. O aluno é aprovado quando repete a resposta que o professor ensinou. A letra mudou. Mas a música continua a mesma. Pois não é isto que são os vestibulares? Ao final existe o gabarito: O conjunto das respostas certas. Claro que há respostas certas e erradas. O equívoco está em se ensinar ao aluno que é disto que a ciência, o saber, a vida, são feitos. E, com isto, ao aprender as respostas certas, os alunos desaprendem a arte de se aventurar e de errar, sem saber que, para uma resposta certa, milhares de tentativas erradas devem ser feitas. Espero que haverá um dia em que os alunos serão avaliados também pela ousadia dos seus vôos! Teses que serão aprovadas a despeito de seu final insólito: “Assim, ao final de todas estas pesquisas, concluímos que todas as nossas hipóteses estavam erradas”. Pois isto também é conhecimento. Escondidos em meio à vegetação da floresta,observávamos a anta que bebia à beira da lagoa. Suas costas estavam feridas, fundos cortes onde o sangue ainda se via. O guia explicou: “A anta é um animal apetitoso, presa fácil das onças. E sem defesas. Contra a onça ela só dispõe de uma arma, estabelece uma trilha pela floresta, e dela não se afasta. Este caminho passa por baixo de um galho de árvore, rente às suas costas. Quando a onça ataca e crava dentes e garras no seu lombo, ela sai em desabalada corrida por  sua trilha.

     Seu corpo passa por baixo do galho. Mas a onça recebe uma paulada. “E assim, a anta tem uma chance de fugir” Acho que a educação frequentemente cria antas: pessoas que não se atrevem a sair das trilhas aprendidas, por meio da onça. De suas trilhas sabem tudo, os mínimos detalhes, especialistas. Mas o resto da floresta permanece desconhecido. Pela vida afora vão brincando de “Boca de Forno..."

Em: A Alegria de Ensinar, Rubem Alves. Ars Poética Editora Ltda. 1994

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