Não é meu esta caso, mas dum tio, juiz numa Itaoca beira-mar. Homem sessentão, cheio de rabugens, pigarros e mais macacoas da velhice, nem por isso deixa de ser amigo da pulha, como diria Mestre Machado. Gosta de contar pilhérias e casos de truz, que a meio descambam em caretas reumáticas, muito de apiedar corações sobrinhos.
Os seus domínios
jurídicos são o reino da própria Pacatez. Os anos ali fluem para o Esquecimento
no deslizar preguiçoso dos ribeirões espraiados, sem cascatas nem corredeiras
encrespadoras do espelho das águas — distúrbio, tiro ou escândalo passional. O
povo, escasso como penas em frango impúbere, vive de apanhar tainhas e
mariscos. Feito o que, da capo às
tainhas e mariscos.
É extrema a penúria
de emoções. Vidas há que ardem inteirinhas sem o tremelique duma comoção forte.
Só a Morte pinga, a espaços, no cofre dos acontecimentos, o vintém azinhavrado
dum velho mariscador morto de pigarro senil, ou o tostão duma pessoa grada,
coletor de rendas, fiscal, agente do correio.
Em tempos deu cédula graúda, um visconde da Jamanta, último
varão conspícuo de que ficou memória no lugar.
Fora disso nada mais
bole com a sensibilidade em perpétua coma de excelente povo — nem dramas de
amor, nem rixas eleitorais, nem coisa nenhuma destoante dos mandamentos do
Pasmado Viver.
A taramelagem das
más-línguas vê-se forçada, nos serões familiares, ou na venda do José Inchado
(clube da ralé), ou na Botica do Cação de Ouro (aqui o escol), a esgaravatar as
castanhas chochas do assunto sovado ou frívolo. Sempre conversinhas que não vão
nem vêm.
A grande preocupação
de todos é matar o tempo. Matam-no, os homens, pitando cigarrões de palha, e as
mulheres, gestando a prole enfermiça. E assim escorregam-se para o Nirvana os
dias, os meses, os anos, como lesmas de Cronos, deixando nas memórias um
rastilho dúbio que rapidamente se extingue.
Nessa lagoa urbana
rebentou com estardalhaço a notícia duma sessão do júri. O povo rejubilou.
Vinte anos havia que o realejo da justiça popular empoeirava num desvio do
Fórum, mudo à falta dum capadócio que lhe metesse no bojo o níquel dum modesto
ferimento leve. Fizera-o agora o Chico Baiano, ave de arribação despejada ali
por um navio da Costeira. Que regalo! Ia o promotor cantar a tremenda ária da
Acusação; o Zezeca Esteves, solicitador, recitaria a Douda de Albano disfarçada
de Defesa. Sua Excelência o Meritíssimo Juiz faria de ponto e contrarregra.
Delícias da vida!
Ao pé do fogo, em
casebre humilde, o pai explicava ao filho:
— Aquilo é que é,
Manequinho! Você vai ver uma estrumela de gosto, que até parece missa cantada
de Taubaté. O juiz, feito um gavião-pato, senta no meio da mesa, num estrado
deste porte; à mão direita fica o doutor promotor com uma maçaroca de papéis na
frente. Embaixo, na sala, uma mesa comprida com os jurados em roda. E a coisa
garra num falatório até noite alta: o Chico lê que lê; o promotor fala e
refala; o Zezeca rebate e tal e tal. Uma lindeza!
O assunto era o mesmo
na venda do José Inchado.
— Lembra-se,
compadre, daquele júri, deve fazer vinte anos, que “absorveu” o Pedro Intanha?
Eh, júri macota! O doutor Gusmão veio de Pinda especialmente e falou que nem um
vigário. Era só o “nobre orgo do ministério” praqui, o “meretrício doutor juiz”
prali. Sabia dizer as coisas o ladrão! Também, comeu milho grosso!, pra mais de
quinhentos bagos, dizem. Mas valia. Isso lá valia.
Na Botica do Cação de
Ouro o assunto ainda era o mesmo.
— Não, não; você está
enganado; não foi desse jeito, não! Ora! Pois se eu até servi de testemunha!…
Não teime, homem de Deus!… Sabe como foi? Eu conto. O Pedro Intanha teve um
bate-boca com o major Vaz, perdeu a cabeça e chamou ele de estupor bem ali
defronte da Nhá Veva; e vai o major e diz: “Estupor é a avó”. Foi então o Pedro
e…
Só não gostou da
notícia o meu tio juiz. Maçada. Incomodarem-no por causa de um crimezinho tão à
toa. E tinha razão. O delito do mulato não valia uma casca de ostra.
Chico Baiano
costumava todas as noites “soverter” um martelo da “legítima” no botequim do
Bento Ventania. Ficava alegrete, chasqueador, mas não passava disso. Certa vez,
porém, errou a dose, e em vez do martelo do costume chamou ao papo três. A
pinga era forte; subiu-lhe imediatamente à torre das ideias. A princípio Baiano
destabocou. Deu grandes punhadas no balcão; berrou que o Sul é uma joça; que o
Norte é que é; que baiano é ali no duro; que quem fosse homem que pulasse para
fora etc. etc. O botequim estava deserto; não havia quem lhe apanhasse a luva,
a não ser o Ventania; mas este acendeu o cigarro pachorrentamente, trancou as
portas na cara do bêbado e foi dormir.
Chico Baiano, na rua,
continuou a desafiar o mundo — que rachava, partia caras, arrancava fígados.
Infelizmente também a rua estava deserta e nem sequer a minguante a pino lhe
dava sombras com que esgrimir-se.
Foi quando saltou do
corredor da casa dos Mouras o Joli, cachorrinho de estimação da
Sinharinha Moura, bicho de colo, metade pelado, metade peludo, e deu de ladrar, feito um bobo, diante do insólito perturbador do silêncio.
Sinharinha Moura, bicho de colo, metade pelado, metade peludo, e deu de ladrar, feito um bobo, diante do insólito perturbador do silêncio.
O Baiano sorriu-se.
Tinha contendor, afinal.
— ’guenta, lixo! — berrou
e, cambaleando, descreveu uma “letra” de capoeiragem, cujo remate foi o
valentíssimo pontapé com que projetou o totó a cinco metros de distância. Joli
rompeu num ganir de cortar a alma, e o ofensor, perdido o equilíbrio, veio de
lombo no chão.
A Mourisma despertou
de sobressalto, surgindo logo à porta o redondo da Câmara, Maneco Moura, de
camisola, carapuça de dormir e vela na mão.
Estrovinhado, o homem
não enxergava coisa nenhuma desta vida, a não ser o clarão da luz à sua frente.
— Que é lá aí? — berrou
ele para a rua.
— É pimenta-cumari! —
roncou o mulato já a prumo; e enquanto, esfregando os olhos, o Moura perguntava
a si próprio se não era aquilo pesadelo, o facínora desenhou no chão uma figura
de capoeiragem chamada “rabo de arraia”. Consequência: o pesado vereador aluiu
com vela e tudo, esborrachando o nariz no cimento da calçada.
Era esse o fato sobre
o qual ia a Justiça manifestar-se.
Fale o tio:
— Foi uma seca sem
nome o tal do júri. O promotor, sequioso por falar, com a eloquência ingurgitada
por vinte anos de choco, atochou no auditório cinco horas maciças duma retórica
do tempo do onça, que foram cinco horas de pigarros e caroços de encher
balaios. Principiou historiando o direito criminal desde o Pitecantropo Erecto,
com estações em Licurgo e Vedas, Moisés e Zend-Avesta. Analisou todas as
teorias filosóficas que vêm de Confúcio a Freixo Portugal: aniquilou Lombroso e
mais “lérias” de Garófalo (que dizia Garofálo); provou que o livre-arbítrio é a
maior das verdades absolutas e que os deterministas são uns cavalos, inimigos
da religião de nosso país; arrasou Comte, Spencer e Haeckel, representantes do
anti-Cristo na terra; esmoeu Ferri. Contou depois sua vida, sua nobre
ascendência entroncada na alta prosápia duns Esteves do rio Cávado, em Portugal:
o heroísmo de um tio morto na Guerra do Paraguai e o não menos heroico
ferimento de um primo, hoje escriturário do Ministério da Guerra, que no
Combate de Cerro Corá sofreu uma arranhadura de baioneta na “face lateral do
lobo da orelha sinistra”.
“Provou em seguida a imaculabilidade da sua vida; releu o
cabeçalho da acusação feita no julgamento-Intanha; citou períodos de Bossuet —
a águia de Meaux, de Rui — a águia de Haia, e de outras aves menores; leu
páginas de Balmes e Danoso Cortez sobre a resignação cristã; aduziu todos os
argumentos do doutor Sutil a respeito da Santíssima Trindade; e concluiu,
finalmente, pedindo a condenação da ‘fera humana que cinicamente me olha como
para um palácio’ a trinta anos de prisão celular, mais a multa da lei.”
Aqui o tio parou,
acabrunhado. Correu a mão lívida pela testa em suor. Negrejaram-se-lhe as
olheiras.
— Sinto um cansaço de
alma ao recordar esse dia. Como é fértil em recursos a imbecilidade humana!
Houve réplica. Houve tréplica. O Zezeca bateu o promotor em asnice.
Engalfinharam-se, disputando acirrados o cinturão de ouro do Ornejo.
Horror… O borbotão de
asneiras era caudal sem fim e o
conselho já dava evidentes sinais de canseira. A tantas, um jurado levantou-se e pediu licença para ficar de cócoras no banco, porque, “com perdão da palavra, estava com escandescência”. Veja você!…
conselho já dava evidentes sinais de canseira. A tantas, um jurado levantou-se e pediu licença para ficar de cócoras no banco, porque, “com perdão da palavra, estava com escandescência”. Veja você!…
— Afinal…
— Afinal foram os
jurados para a sala secreta. Noite alta já. Os candeeiros de petróleo, com os
vidros fumados, modorravam funeriamente. O Fórum, deserto de curiosos, estava
quase às escuras. O destacamento policial (dois praças e um cabo) cabeceava, a
dormir em pé. Três horas já haviam corrido, de sonolenta expectação, quando da
sala secreta saem os jurados com o papelório.
Entregam-mo. Corro os
olhos e esfrio. Tudo errado! Era impossível julgar com base na salada de batata
e ovos que me fizeram dos quesitos. Tive de reenviá-los ao curral do conselho.
Expliquei-lhes novamente, com infinita paciência, como deveriam proceder. Façam
isto, assim, assado, entenderam?
“— Entendemos, sim,
senhor — respondeu um por todos —, mas por via das dúvidas era bom que o seu
doutor mandasse cá dentro o João Carapina pra nos ajudar.
“Abri a minha maior
boca e olhei assombrado para o escrivão:
“— E esta, amigo
Chico?
“O escrivão
cochichou-me que era sempre assim. Em não sorteado o João Carapina, não havia
meio de a coisa correr bem na sala secreta. E citou vários antecedentes
comprobatórios. Não me contive — berrei, chamei-lhes nomes, asnos de Minerva,
onagros de Têmis, e fi-los trancafiar de novo na saleta.
“— Ou a coisa vem
conforme o formulário, ou vocês, cambada, ficam aí toda vida!
“Decorreu mais outra
hora e nada. Nenhum ruído promissor na sala secreta. Perdi a esperança e acabei perdendo a paciência. Chamei o oficial de
justiça.
“— Vá desentocar-me
esse Carapina e ponha-mo cá debaixo de vara, dormindo ou acordado, vivo ou
morto. Depressa!…
“O oficial saiu,
lépido, e meia hora depois voltava com o carpinteiro dos nós górdios a bocejar,
estremunhado, de chinelas e cobertor vermelho ao pescoço.
“— Senhor João —
gritei —, meta-se na sala secreta e amadrinhe-me esse lote de cavalgaduras. Com
seiscentos milhões de réus, é preciso acabar com isto!
“O carpinteiro foi
introduzido na sala secreta.
“Logo em seguida,
porém, toc, toc, toc, batem lá de dentro. O oficial de justiça abre a porta.
Surge-me o Carapina com cara idiota.
“— Que há? —
perguntei, escamado.
“— O que há, senhor
doutor, é que não há ninguém na sala; os jurados fugiram pela janela!…
“— !!!
“— E deixaram em cima
da mesa este bilhetinho para Vossa Excelência.
“Li-o. ‘Senhor Doutor
Juiz, nos desculpe, mas nós condenamos o bicho no grau máximo.’
“Máximo foi a palavra
que decifrei pelo sentido: estava escrito ‘maquécimo’.
“Levantei-me,
possesso.
“— Está suspensa a
sessão! Senhor comandante, recolha o réu à… Que é do réu?
“Firmei a vista: não
vi sombra de réu no banquinho. O comandante, que estava a dormir de pé,
despertou sobressaltado, esfregando o olho.
“— Senhor que é do
réu? — gritei.
“O pobre cabo, com a
ajuda dos dois soldados a caírem de sono, deu busca embaixo da mesa, pelos
cantos, no mictório, dentro das escarradeiras. Como nada encontrasse,
perfilou-se e disse com respeitosa indignação:
“— Saberá Vossa
Excelência que o safado escafedeu…
“O relógio da matriz
badalava três horas — três horas da madrugada!… Era demais. Perdi a compostura e explodi.
“— Sabem duma coisa?
Vão todos à… — e berrei a plenos pulmões o grande palavrão da língua
portuguesa.”
— E?…
— E fui dormir.
Caricatura de:Baptistão
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