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Conversa de Viajantes, Stanislaw Ponte Preta

   
    É muito interessante a mania que tem certas pessoas de comentar episódios que viveram em viagens, com descrições de lugares e coisas, na base de “imagine você que...”. Muito interessante também é o ar superior que cavalheiros, menos providos de espirito pouquinha coisa, costumam ostentar depois que estiveram na Europa ou nos Estados Unidos (antigamente até Buenos Aires dava direito a empáfia). Alias, em relação a viajantes, ocorrem episódios que, contando, ninguém acredita.
     O camarada que tinha acabado de chegar de Paris e – por sinal – com certa humildade, estava sentado numa poltrona, durante a festinha, quando a dona da casa veio apresenta-lo a um cavalheiro gordote, de bigodinho empinado, que logo se sentou a seu lado e começou a “boquejar” (como diz o Grande Otelo):
     – Quer dizer que esta vindo de Paris, hem? – arriscou. O que tinha vindo fez um ar modesto: – E!!!
     – Naturalmente o amigo não se furtou ao prazer de ir visitar o Palácio de Versalhes.
     – Não. Não estive em Versalhes. Era muito longe do hotel onde me hospedei.
     – Mas o amigo cometeu a temeridade de não ficar no Plaza Athénée?
     O que não ficara no Plaza Athénée deu uma desculpa, explicou que o seu hotel fora reservado pela Cia. Onde trabalha e, por isso, não tivera vez  escolha.
     – Bem – concordou o gordinho –, o Plaza realmente e um pouco caro, mas é muito central e há outros hotéis mais modestos que ficam perto do Plaza. – E depois de acender um cigarro, lascou: – Passeou pelos Bois?
     – Passei pelo Bois uma vez, de táxi.
     – Mas o amigo vai me desculpar a franqueza; o amigo bobeou. Não há nada mais lindo do que um passeio a pé pelo Bois de Boulogne, ao cair da tarde. E não há nada mais parisiense também.
     – É... eu já tinha ouvido falar nisso. Mas havia outras coisas a fazer.
     – Claro... claro... Há coisas mais importantes, principalmente no setor das artes – e sem tomar o menor folego: – Visitou o Louvre?...
     – Visitei.
     – Viu a Gioconda?
     O recém-chegado não tinha visto a Gioconda. No dia em que esteve no Louvre, a Gioconda  não estava em exposição.
      – Mas o senhor prevaricou – disse o gordinho, quase zangado. – A  Gioconda  só está em exposição as 5.as e sábados e ir ao Louvre noutros dias é negar a si mesmo uma comunhão maior com as artes.
     Passou uma senhora, cumprimentou o ex-viajante e, mal ela foi em frente, nova pergunta do cara:
     – E a comida de Paris, hem amigo? Você jantava naqueles bistrozinhos de Saint-Germain? Ou preferia os restaurantes típicos de Montmartre? Ha um bistrô que fica numa transversal da Rue de...
     Mas não pode acabar de esclarecer qual era a rua, porque o interrogado foi logo afirmando que jantara quase sempre no hotel. E sua paciência se esgotou quando o chato quis saber que tal achara as mulheres do Lido.
     – Eu não fui ao Lido também. O senhor compreende. Eu estive em Paris a serviço e sou um homem de poucas posses. Quase não tinha tempo para me distrair. De mais a mais, lá e tudo muito caro.
    – Caríssimo – confirmou o gordinho, sem se mancar.
    – O senhor, naturalmente, esteve lá a passeio e pode fazer essas coisas todas – aventou, como quem se desculpa.
     Foi ai que o gordinho botou a mãozinha rechonchuda sobre o peito e exclamou: – Eu??? Mas eu nunca estive em Paris!

(Ponte Preta, Stanislaw. O melhor de Stanislaw. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.)     

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