Todo dia ela pensava apenas sobre as questões práticas da vida. Tem pão pro café? O filho devolveu o livro da biblioteca? A roupa tá passada? Os relatórios do trabalho prontos? O chefe satisfeito? O ingresso pro teatro comprado? O dinheiro na poupança? Sim, sim e sim. Era muito organizada. Tudo no esquadro. Pé mais do que no chão.
Quando lia o jornal pulava sem pestanejar a seção do
horóscopo. Nem sabia seu ascendente. Nunca entrava em loja de artigos
esotéricos. Não amarrava fitinha só senhor do Bonfim. Aliás, amarrou só uma vez
porque estava vindo de uma temporada na praia e aquele amarelo ia bem. E sem
nenhum constrangimento cortou-a com a tesourinha quando começou a ficar
embolada. Religião? Não tinha. A família era católica e ela gostava de cantar
musiquinhas de igreja, mas nem crismada foi; quando achou que aquele mundo não
fazia sentido disse "não", para desgosto da mãe e das tias, que
acreditavam eu tudo. Tudo mesmo. Ela se divertia com banhos para tirar energias
negativas que lhe preparavam para o Ano-Novo. Pra não deixá-las chateadas, até
jogava no corpo o líquido do frasco quando vinha cheiroso, ou quem sabe
despejava pelo ralo, mas devolvia vazio. "Obrigada". E soltava
um risinho...
Passou embaixo de mais escadas que qualquer um, só pra ver os
olhares espantados e sinais da cruz das pessoas na rua. E, quando podia, ainda
levava um gato preto no colo! Se tinha algum problema e alguém vinha ensinar
uma simpatia, ela logo desconversava: "Não acredito".
Quando era nova, ganhou um trevo de quatro folhas
plastificado de um namoradinho da escola e, pra desespero do moleque, começou a
descolá-lo só pra provar que era falso. "Viu?" Ele foi embora. Ela
ainda mostrou o troféu pra todo mundo.
Gostava muito de matemática, mas conseguiu brigar com seu
professor preferido quando teimou sobre o conceito de números imaginários.
"Tente me explicar de novo porque ainda não entendi." O seu próprio
veredito foi que era algo de que ela também não ia precisar acreditar mesmo...
No fundo, às vezes ela era cruel. Mas sua educação disfarçava
isso bem. Em qualquer jantar com amigos ela sempre acabava discutindo e no fim
ia embora pra não brigar de verdade. Zombava do casal que estava fazendo
análise há dez anos. Não acreditava. Achava engraçado a prima ver um programa
de TV sobre um senhor que se comunicava com parentes mortos. Até no cinema,
quando o assunto era "crer ou não crer" ela dizia em voz alta:
"Mas não é possível, gente!" Uma quase chata.
E assim viveu por muito tempo. Se não houvesse questão
metafísica no caminho, tudo bem. De certa forma ela e suas certezas interiores
se bastavam. Tinha seus problemas mas achava que tudo se resolvia, de algum
modo, com o passar da vida.
Era véspera de seu aniversário de cinquenta anos e uma coisa
estranha aconteceu. Ao acordar, não sentiu vontade de comer. Nem de ir
trabalhar. Nem de verificar se estava tudo certo em casa. Fechou os olhos de
novo e percebeu que todas as suas certezas tinham desaparecido. Num primeiro
momento, nem nisso acreditou. Depois de passar o dia sentada na cama dando
desculpa de que estava se sentindo enjoada, ligou assustada para sua melhor
amiga contando o que se passava.
A amiga sorriu, abriu a bolsa e escreveu, com a mais bela
caligrafia, uma frase numa página arrancada de sua agenda. Entregou à mulher
que, ao ler aquilo, deu-lhe um abraço longo e apertado. Não podia ser a mesma
depois daquele dia. E não foi.
Para sempre guardou em sua carteira aquele amuleto:"Eu
acredito em você".
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