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Mostrando postagens de maio, 2019

Aprenda a Chamar a Polícia, Luis Fernando Veríssimo

          Eu tenho o sono muito leve, e numa noite dessas notei que havia alguém andando sorrateiramente no quintal de casa. Levantei em silêncio e fiquei acompanhando os leves ruídos que vinham lá de fora, até ver uma silhueta passando pela janela do banheiro.                   Como minha casa era muito segura, com  grades nas janelas e trancas internas nas portas, não fiquei muito preocupado, mas era claro que eu não ia deixar um ladrão ali,espiando tranquilamente. Liguei baixinho para a polícia, informei a situação e o meu endereço. Perguntaram- me se o ladrão estava armado ou se já estava no interior da casa.            Esclareci que não e disseram-me que não havia nenhuma viatura por perto para ajudar, mas que iriam mandar alguém assim que fosse possível. Um minuto depois liguei de novo e disse com a voz calma: - Oi, eu liguei há pouco porque tinha alguém no meu quintal. Não precisa mais ter pressa. Eu já matei o ladrão com um tiro da escopeta calibre 12, que tenho guard

A Antiga e Íntima Relação Entre Música e Literatura, Thamara e Thainara Amorim.

     Música e literatura, duas artes distintas, são poeticamente e historicamente correlatas. A letra musical, na qualidade de narrativa e a experiência literária enquanto, muitas vezes, sonora, podem ser ambas importantes aliadas: ainda que sejam, de fato, produções culturais únicas, como arte se complementam. Embora observadas hoje isoladamente, a distinção entre essas duas formas artísticas só se dá, então, com o declínio da oralidade literária, a partir da ascensão da imprensa, quando o ato de ler se torna solitário. Antes disso, desde a Antiguidade Clássica, a junção entre música e literatura era percebida como natural. A propósito, na Grécia Antiga, era impensável fazer um sem o outro. Isso porque, texto e melodia se fundiam quase em uma arte só, já que o ato de ler sozinho não era comum naquela sociedade. Logo, durante a tradição helenística, a poesia lírica era acompanhada de instrumentos e cantada por um poeta solo ou por um coro.  "Safo e Alcaeus" (188

Um Baobá no Recife, João Cabral, de Melo Neto

Recife. Campo das Princesas.  Lá tropecei com um baobá. Crescido em frente das janelas  do governador que sempre há. Aqui, mais feliz, pode ter úmidos que ignora o Sahel;  dá-se em copudas folhas verdes que dão nossas sombras de mel Faz de jaqueiras, cajazeiras, se preciso, de catedral; faz de mangueiras, faz de sombra que adoça nosso litoral.  2  Na parte nobre do Recife,  onde seu rebento pegou, vive,  ignorado do Recife,  de quem vai ao governador. Destes nenhum pensou (se o viu)  que na África ele é cemitério:  se no tronco desse baobá enterrasse os poetas de perto,  criaria, ao alcance do ouvido,  senado sem voto e discreto:  onde o sim valesse o silêncio. Imagem: OxeRecife

A Vida Em Oblivion, Monteiro Lobato

           A cidadezinha onde moro lembra soldado que fraqueasse na marcha e, não podendo acompanhar o batalhão, à beira do caminho se deixasse ficar, exausto e só, com os olhos saudosos pousados na nuvem de poeira erguida além. Desviou-se dela a civilização. O telégrafo não a põe à fala com o resto do mundo, nem as estradas de ferro se lembram de uni-la à rede por intermédio de humilde ramalzinho.      O mundo esqueceu Oblivion, que já foi rica e lépida, como os homens esquecem a atriz famosa logo que se lhe desbota a mocidade. E sua vida de vovó entrevada, sem netos, sem esperança, é humilde e quieta como a do urupê escondido no sombrio dos grotões.      Trazem-lhe os jornais o rumor do mundo, e Oblivion comenta-o com discreto parecer. Mas como os jornais vêm apenas para meia dúzia de pessoas, formam estas a aristocracia mental da cidade. São “Os Que Sabem”. Lembra o primado dos Dez de Veneza, esta sabedoria dos Seis de Oblivion.      Atraídos pelas terras novas, de fer

50 melhores Livros do Século 21, Revista Bula

(POR   MARIANA FELIPE ) A Revista Bula realizou duas enquetes — em 2018 e 2019 — para descobrir quais são, na opinião dos leitores, os melhores livros publicados no século 21.  As consultas foram feitas a colaboradores, assinantes — a partir da newsletter —, e seguidores da página da revista no Facebook e no Twitter. Os 50 livros mais lembrados pelos leitores foram reunidos em uma lista, composta, predominantemente, por obras de ficção. A seleção abrange livros nacionais e estrangeiros, que foram publicados a partir do dia 1 de janeiro de 2001, sendo que todas elas tiveram tradução para o português. De acordo com um levantamento prévio feito pelos editores da Bula, pouquíssimas pessoas já leram mais do que quatro livros presentes na lista. Para descobrir se você é uma exceção, basta contabilizar quantas obras você já leu dentre as 50 listadas. 1 — Reparação (2001), de Ian McEwan 2 — Não me Abandone Jamais (2005), de Kazuo Ishiguro 3 — A Estrada (2006), de Cormac Mc

A Mulher Que Não Queria Acreditar, Fernanda Takai

         Todo dia ela pensava apenas sobre as questões práticas da vida. Tem pão pro café? O filho devolveu o livro da biblioteca? A roupa tá passada? Os relatórios do trabalho prontos? O chefe satisfeito? O ingresso pro teatro comprado? O dinheiro na poupança? Sim, sim e sim. Era muito organizada. Tudo no esquadro. Pé mais do que no chão.      Quando lia o jornal pulava sem pestanejar a seção do horóscopo. Nem sabia seu ascendente. Nunca entrava em loja de artigos esotéricos. Não amarrava fitinha só senhor do Bonfim. Aliás, amarrou só uma vez porque estava vindo de uma temporada na praia e aquele amarelo ia bem. E sem nenhum constrangimento cortou-a com a tesourinha quando começou a ficar embolada. Religião? Não tinha. A família era católica e ela gostava de cantar musiquinhas de igreja, mas nem crismada foi; quando achou que aquele mundo não fazia sentido disse "não", para desgosto da mãe e das tias, que acreditavam eu tudo. Tudo mesmo. Ela se divertia com banho

Conversa de Viajantes, Stanislaw Ponte Preta

        É muito interessante a mania que tem certas pessoas de comentar episódios que viveram em viagens, com descrições de lugares e coisas, na base de “imagine você que...”. Muito interessante também é o ar superior que cavalheiros, menos providos de espirito pouquinha coisa, costumam ostentar depois que estiveram na Europa ou nos Estados Unidos (antigamente até Buenos Aires dava direito a empáfia). Alias, em relação a viajantes, ocorrem episódios que, contando, ninguém acredita.      O camarada que tinha acabado de chegar de Paris e – por sinal – com certa humildade, estava sentado numa poltrona, durante a festinha, quando a dona da casa veio apresenta-lo a um cavalheiro gordote, de bigodinho empinado, que logo se sentou a seu lado e começou a “boquejar” (como diz o Grande Otelo):      – Quer dizer que esta vindo de Paris, hem? – arriscou. O que tinha vindo fez um ar modesto: – E!!!      – Naturalmente o amigo não se furtou ao prazer de ir visitar o Palácio de Versalhes.

Uma Prosa Sobre Meus Gatos, Manuel António Pina

Perguntaram-me um dia destes ao telefone por que não escrevia poesia (ao menos um poema) sobre os meus gatos; mas quem se interessaria pelos meus gatos, cuja única evidência é serem meus (digamos assim) e serem gatos (coisa vasta, mas que acontece a todos os da sua espécie)? Este poderia (talvez) ser um tema (talvez até um tema nobre), mas um tema não chega para um poema nem sequer para um poema sobre; porque é o poema o tema, forma apenas. Depois, os meus gatos escapam demais à poesia, ou de menos, o que vai dar ao mesmo, são muito longe ou muito perto, e o poema precisa do tempo certo de onde possa, como o gato, dar o salto; o poema que fizesse faria deles gatos abstractos, literários, gatos-palavras, desprezível comércio de que não me orgulharia (embora a eles tanto lhes desse). Por fim, não existem “os meus gatos”, existem uns tantos gatos-gatos, um gato, outro gato, outro gato, que por um expediente singular

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

M.P.B poesia: Oração ao Tempo, Caetano Veloso

És um senhor tão bonito Caetano Veloso:infância,juventude,maturidade Quanto a cara do meu filho Tempo Tempo Tempo Tempo Vou te fazer um pedido Tempo Tempo Tempo Tempo Compositor de destinos Tambor de todos os ritmos Tempo Tempo Tempo Tempo Entro num acordo contigo Tempo Tempo Tempo Tempo Por seres tão inventivo E pareceres contínuo Tempo Tempo Tempo Tempo És um dos deuses mais lindos Tempo Tempo Tempo Tempo Que sejas ainda mais vivo No som do meu estribilho Tempo Tempo Tempo Tempo Ouve bem o que te digo Tempo Tempo Tempo Tempo Peço-te o prazer legítimo E o movimento preciso Tempo Tempo Tempo Tempo Quando o tempo for propício Tempo Tempo Tempo Tempo De modo que o meu espírito Ganhe um brilho definido Tempo Tempo Tempo Tempo E eu espalhe benefícios Tempo Tempo Tempo Tempo O que usaremos pra isso Fica guardado em sigilo Tempo Tempo Tempo Tempo Apenas contigo e migo Tempo Tempo Tempo Tempo E quando eu tiver saído Para fora do teu círculo Tempo Tempo Tempo Tempo Não serei nem ter

Um Juri Na Roça, Monteiro Lobato

          Não é meu esta caso, mas dum tio, juiz numa Itaoca beira-mar. Homem sessentão, cheio de rabugens, pigarros e mais macacoas da velhice, nem por isso deixa de ser amigo da pulha, como diria Mestre Machado. Gosta de contar pilhérias e casos de truz, que a meio descambam em caretas reumáticas, muito de apiedar corações sobrinhos.      Os seus domínios jurídicos são o reino da própria Pacatez. Os anos ali fluem para o Esquecimento no deslizar preguiçoso dos ribeirões espraiados, sem cascatas nem corredeiras encrespadoras do espelho das águas — distúrbio, tiro ou escândalo passional. O povo, escasso como penas em frango impúbere, vive de apanhar tainhas e mariscos.   Feito o que, da capo às tainhas e mariscos.      É extrema a penúria de emoções. Vidas há que ardem inteirinhas sem o tremelique duma comoção forte. Só a Morte pinga, a espaços, no cofre dos acontecimentos, o vintém azinhavrado dum velho mariscador morto de pigarro senil, ou o tostão duma pessoa grada, coletor