Maria Rosa ficava no fim da serpentina, cabelos deslumbrantes de alvoroço e dourado, bailarina azul,solitária sobre a capota descida do trepidante automóvel.
O corso rodava,vagaroso, com tripla fila, com amplas e seguidas paradas, entre alas de ditos e fantasias - havia corso, então, foi há tanto tempo que os automóveis ainda eram fechados para os donos não sofrerem frio ou poeira e esconderem melhor seus mistérios de amor.
Em parábolas, as serpentinas cortavam o ar da Avenida, desaguadouro dos foliões de todos os bairros, compacto manto feliz de narizes falsos, máscaras grotescas, vozes de falsete, cantos, rodopios, reco-recos.
A serpentina não findara. Maria Rosa recolheu no regaço de filó o rolo quase intacto; num gesto difícil, desajeitado, devolveu a fita amarela com o beijo na ponta que veio estalar no coração juvenil, e que, ainda hoje ecoa com a mesma cor e fragrância na entrada de um outro carnaval sem corso e sem serpentinas.
Ai seu Mé!
Ai seu Mé!
Lá no Palácio das Águias
Olé!
Nunca hás de por o pé.
Das sacadas pejadas de gente tombava confete, gotas multicores de papel, que escondiam o chão; o céu ameaçador para os lados do mar estremecia de relâmpagos; o calor como onda misturada de éter perfumado não diminuía o furor da alegria; e o chii dos lança-perfumes e os gritinhos nervosos das moças atingidas pelo friozinho folião e gentil
A serpentina parecia inextinguível. No meio de mil outras, minha e amarela, ligava dois desejos fugazes por suas pontas frágeis. Novamente cortou o espaço a caminho do regaço azul. Parou ao meio, finda afinal, ficou vibrando no ar como desesperada bandeira compridíssima. ah! abriu a boca pintadíssima - outra! outra!
Voou ao maravilhoso apelo a serpentina azul, que se confundiu no saiote da bailarina por três diass e as pernas alvas cerraram-se para contê-la.
Vem serpentina azul, vai serpentina vermelha, os estandartes improvisados requebram no meio do poveréu, os trombones usam toda a voz, os pandeiros, os chocalhos, os instrumentos improvisados com latas, caixas de charuto atordoam, todas as bocas, milhares de bocas sabem de repente a mesma canção, um único rítmo como que sacode a Avenida de ponta a ponta, e Maria Rosa canta tmbém e sacode-se, bamboleia, bate palmas, mexe com os desconhecidos e segura-se medrosa aos ferros da capota, quando o carro dá arranco para parar dois metros adiante.
Ai seu Mé!
Ai seu Mé!
Lá no Palácio das Águias
Olé!
Nunca hás de por o pé.
Maria Rosa tem pouca direção nos seus golpes - a serpentina verde passa longe do meu alcance, a violeta bate no pára-brisas, a branca atreve-se a deslizar pelo grande bigode do chofer ao meu lado - quantas se perdem pelo chão, escondendo-se no tapete de confetes, esmagadass pelos pés dos mascarados e pelas rodas dos carros!
Mas mesmo assim os nossos carros vão se unindo na trama rápida e enamoraa das fitas de papel - sou rico de serpentinas, de entusiasmo, de desejo. Os pierrôs que a acompanham - três de preto, imensas golas escarlates de tartalana e guizos - vivem o seu momento carnavalesco em pé no automóvel. Do meu lado os companheiros têm olhos para outros acontecimentos. E estamos como que sós no meio da desirdenada batalha e os carros chegaram a ficar tão juntos que nos falamos.
Debrucei-me no pára-brisa:
- Como é o seu nome?
Passa o caminhão de crianças e girassóis, como um imenso caramachão, num alarido:
Passa o caminhão de crianças e girassóis, como um imenso caramachão, num alarido:
O povo só quer a goiabada
campista.
Rolinha desista,
Abaixe a crista...
Insisti:
- Como é o seu nome?
Apurou o ouvido:
- Quê?
- Como é o seu nome? e o chofer me olhava de soslaio.
Trazia a boca pintada em forma de coração:
- Meu nome? Para que saber?
Atrevidíssimo, delirante:
- Porque goste de você.
Tão brejeira:
-Oh!
Os carros arrancam em estampidos e fumaça, o liame de serpentinas resiste ao retesamento, os relâmpagos amiúdam-se, se escurece não é só a tarde, é a tempestade de verão que vem e é preciso aproveitar todos os minutos.
-Não quer dizer?
Fazia trejeitos: que não.
- Por quê?
Jogou mais serpentinas, soprou uma corneta de papelão, cochichou com os três pierrôs. De braços com um dominó, a caveira passa com a curva foice arrepiando os medrosos - sai azar! O urso sacode o corpanzil de saco de aniagem - se acendessem um fósforo era uma vez um folião! Uma velha canção brota de todas as almas:
Ô pé de anjo!
Ô pé de anjo!
És rezador, és rezador,
Tens um pé tão grande,
Que és capaz de pisar Nosso Senhor!
Aí eu implorava:
- Não quer dizer?
Era linda! Os dentes miúdos como bagos de milho branco, manchas de sol ao longo dos braços trigueiros, o corpete tão justo que fazia uma marca no peito, o suor escorrendo pelas faces de carmim. A faísca serrou o céu. As primeiras gotas, enormes, estalaram, oh! rugiu a Avenida inteira - chuva!
- Maria Rosa! - gritou ela no meio do oh! imenso e retumbante trovão.
A chuva caiu como um sólido,fulminante, diluvial, batia no chão e levantava- se branca como vapor. Num átimo as sarjetas se encheram, os ralos entupidos de confetes e serpentinas afogados. Em debandada o povo fugia para apinhados e precários abrigos.
O automóvel dela, destro, enfiou pela primeira rua. Ia encharcada já, acenando com o braço de sol. O nosso, por estupidez do chofer, continuou ainda, para fugir afinal por outra rua adiante.
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