I -
Um domingo destes, contou Alexandre aos amigos,
vesti o guarda-peito e o gibão, cobri-me com o chapéu de couro e acendi o
cachimbo, pus o aió a tiracolo, peguei a espingarda, resolvido a desenferrujá-la,
se aparecesse caça graúda. Saí pelo terreiro, dei umas voltas nos arredores,
andei, virei, mexi, afinal encontrei numa vereda, subi a ladeira dos preás e,
sem encontrar bicho que merecesse uma carga de chumbo e um dedal de pólvora,
cheguei à imburana, perto da cerca de ramos. Aí, como o calor apertasse, tirei
o aió, o chapéu, o gibão e o guarda peito, estirei-me no chão e passei uma hora
de papo pra cima, fumando e pensando nos aperreios deste mundo velho. Sentia-me
bem triste,meus amigos, bem desanimado. Eu, homem de família, nascido na
grandeza, criado na fartura, tendo o que precisava, do bom e do melhor,estava
por baixo, muito por baixo:deitado em garranchos de folhas secas, a cabeça num
travesseiro de couros dobrados. Fui-me amadornando, o cachimbo me caiu dos
dentes, fiquei assim meio leso, nem adormecido nem acordado, vendo e ouvindo as
coisas em redor e misturando tudo e casos antigos, De repente uns gritinhos
finos me chamaram a atenção. Esfreguei os olhos, sentei-me, espalhei aquelas
embrulhadas que se juntavam no meu interior. E enxerguei uma espécie de velho
barbudo saltando, fazendo caretas, guinchando e assobiando, como se mangasse de
mim. Atentando na visagem esquisita, reconheci uma guariba. Levei mais que
depressa a lazarina ao rosto, mas não pude atirar: o animal sacudia-se
danadamente, sem oferecer alvo. Depois saltou por cima de uma touceira de macambira e virou
fumaça. Larguei-me atrás dela, andei meia hora examinando marcas de pés no
chão, ramos quebrados, cabelos nas cascas dos paus. Na verdade eu estava com pouca sorte naquele
dia: os sinais diminuíram tomaram
diversas direções, sumiram-se completamente. Aí os gritinhos e os assobios
voltaram. Pareciam vir de todos os lados, e eu não conseguia adivinhar onde se
escondia a peste do bicho. Disse comigo, arreliado: - “Aqui há mandinga, na
certa. Das coisas deste mundo nunca tive medo, com os poderes de Deus, mas em
negócios de feitiçaria não entro. Fujo e entrego os pontos. Deve andar na
vadiação pelo menos meia dúzia de guaribas. “uns risinhos safados me
responderam pela direita e pela esquerda, por diante e por detrás. Fiz o pelo -
sinal, rezei o credo, agarrei-me à Virgem Maria de dispus-me a entrar em casa. Aquela
história começava a azucrinar-me. Ora sim senhores. Acreditem vossemecês que
não acertei o caminho? É exato, achei-me numa atrapalhação, areado pela
primeira vez na vida, completamente desorientado. Incrível, meus amigos, a
coisa mais espantosa que até hoje me aconteceu. Ali pertinho de casa, com o Sol
nas alturas, as árvores, as árvores iluminadas, tudo muito claro, perdido no
mato, eu, um sujeito acostumado a varar capoeira no lombo de bicho brabo. Não
podia haver disparate maior. Tenho vergonha de contar isso. Nunca me vi, antes
ou depois, em situação igual. Se pudesse fumar, descansar, espairecer, arrumar
as idéias que fervilhavam no espírito. Infelizmente o cachimba tinha ficado
debaixo da imburana. E, sem chapéu, aguentando a quentura do meio-dia num verão
puxado, sentia o miolo derreter-se e a vista escurecer.
II - final
Decidi acompanhar os rastos da guariba, na esperança de
que eles me levassem a alguma estrada. Não levaram. Tomei outro rumo. Trabalho
perdido: uma confusão dos pecados. E, à toa, joguei-me para a frente,
embirando-me nos cipós, furqando-me nos espinhos, falando assim cá por dentro: “-
Agora nem volto nem torço. Nesta marcha vou até o fim do mundo. Todo o caminho
dá na venda.” Andei uma légua, pouco mais ou menos. Os assobios e os gritos
desapareceram. Ri-me de mim mesmo, achando graça naquela trapalhada:” -Isto não tem pé nem cabeça. Sonhei provavelmente,
estive sonhando e variando. Peguei no sono, levantei-me sem acordar direito e corri
de um lado para outro, vendo e ouvindo coisas que não existem.” Pensando assim,
entrei num carreiro que me pareceu conhecido. Encontrei uma
cerca de ramos e um formigueiro de formiga branca, subi uma ladeira, alcancei o
alto de um monte, onde topei a imburana. Bem. Respirei aliviado: era ali que eu
tinha adormecido pela manhã. Estava perto de casa, a umas quinhentas braças ou
menos. Procurei os couros que havia largado no chão e não percebi nem sombra
deles. – “que diabo é isto¿” perguntei cá comigo. E comecei a arear-me de novo,
julguei que talvez a imburana não fosse o pé de pau visto poucas horas antes.
No meio da desordem enxerguei na terra folhas secas e gravetos espalhados. Tinha-me
deitado ali, de papo para o ar, sem dúvida. Mas onde estavam os meus arreios?
Era o que eu não podia saber. Tudo naquele dia me andava pelo avesso. Disse baixinho:
-“Valha-me Nossa Senhora do Amparo. Com certeza desci hoje da cama com o pé
esquerdo e não fiz as minhas orações m regra! Foi por isso que o demônio se
soltou e buliu comigo.” Deitei-me, resolvido a descansar um instante, porque o
calor não era deste mundo e a cabeça me ardia desesperadamente. Fechei os
olhos, tornei a abri-los, chateado: aquele desconchavo todo e por fim o
desaparecimento dos picuás não me deixavam sossegar. Nessa altura, descobri lá
em cima, quase escondida na folhagem da imburana, a guariba escanchada num
galho, vestida no guarda – peito e no gibão., com o chapéu na cabeça. Trazia o aio
a tiracolo. Meteu a mão nele, tirou o corrimboque, bateu a pedra-de-fogo,
acendeu o cachimbo, e pôs-se a fumar regalada, balançando-se. Os senhores já
viram bicho fumar? Era cada baforada que ninguém imagina. Pafo! Pafo! Pafo!
Perdi os estribos com semelhante desaforo, gritei: - “Seiscentos diabos!” E levantei
a espingarda: queria botar as coisas em pratos limpos, saber se aquela infeliz
era vivente de fôlego ou alma penada. Aí se deu um caso extraordinário. A guariba
conheceu as minhas intenções, pregou-me o olho e falou deste jeito: - “Seu Alexandre,
vamos fazer um negócio? -Vá criar seus filhos, que eu vou criar os meus.” Atirou-me
lá de cima o cachimbo, o aió, o gibão, o guarda-peito e o chapéu. Fiquei assombrado,
de queixo caído, nem tive coragem de atirar. Aceitei a proposta e deixei que a
desgraçada fosse embora em paz.
em: Alexandre e Outros Heróis, Graciliano Ramos
em: Alexandre e Outros Heróis, Graciliano Ramos
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