Adelaide conheceu bem o que é o preconceito. Depois de morrer asfixiada pelo marido, passou três dias enterrada e voltou à vida como zumbi. No começo foi complicado: ela não se lembrava de muitas coisas e ficou perambulando pelas ruas até se ser reconhecida por uma vizinha. Houve muita resistência por parte de sua família em aceita-la de volta, já que fedia a carniça e soltava pedacinhos de si mesma por onde quer que fosse.
Com o tempo, porém, a morta-viva foi voltando à rotina. Divorciou-se de Olavo depois de coloca-lo na cadeia, retomou os estudos, fez as unhas e até adotou um gatinho preto. Seus filhos ainda sentiam um certo nojinho de andar ao seu lado, já que volta e meia um dos olhos cismava em saltar da órbita. A ex-defunta até que achava graça, e começou a fazer mais vezes esse truque, só para pagar de descolada.
Certa noite, Adelaide resolveu pegar um cineminha. Comprou um balde de pipoca, refrigerante light e drops de anis. Estava se acomodando em sua poltrona quando uma gorda reclamou do mau cheiro. Com receio de que as lágrimas corroessem ainda mais o seu rosto, Adelaide saiu de fininho e voltou para casa. Apesar de estar recobrando as memórias e apresentar um certo cuidado com o visual, a zumbi ainda temia a rejeição.
Passava tantas noites em claro que não demorou muito para se viciar em salas de bate-papo na internet. A conversa fluía muito bem, até Adelaide confessar que já havia passado desta para uma melhor. Foram tantas decepções, que resolveu entrar num fórum de taras bizarras. Surpreendentemente, conheceu um necrófilo que morava no mesmo quarteirão e ambos apaixonaram-se perdidamente depois do segundo encontro.
Daí foram domingos inteiros debaixo dos edredons, transas de outro mundo, horas e horas de telefonemas melosos e intermináveis e-mails com poesias apaixonadas. O necrófilo foi o primeira a dizer “eu te amo”, e Adelaide só ficou chateada por não ter mais como morrer de amores por ele, por motivos óbvios. Ambos viveram felizes até o dia em que ela, distraída, foi colocar um bolo no forno e acabou cremada. Coisas da vida após a vida.
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