Muitos homens, e até senhoras, já receberam a visita do Diabo, e conversaram com ele de um modo elegante e paradoxal. Centenas de escritores sem assunto inventaram uma palestra com o Diabo. Quanto a mim, o caso é diferente. Ele não entrou subitamente em meu quarto, não apareceu pelo buraco da fechadura, nem sob a luz vermelha do abajur. Passou um dia inteiro comigo. Descemos juntos o elevador, andamos pelas ruas, trabalhamos na Redação do Jornal e comemos juntos.
A principio confesso que estava um pouco inquieto. Quando fui comprar cigarros, receei que ele dirigisse algum galanteio baixo à moça da tabacaria. É uma senhorita de olhos cor de garapa e cabelos castanhos muito simples, porém muito bonitos que eu conheço e que me conhece, embora a gente não se cumprimente. Mas o Diabo se comportou honestamente. O dia todo – era um sábado – correu sem novidade. Ele esteve ao meu lado na mesa de trabalho na Redação, no restaurante, no engraxate, no barbeiro. Eu lhe paguei o cafezinho; ele me pagou o bonde.
À tarde, eu já não o chamava de Belzebu, mas apenas de Bebu e ele me chamava de Rubem. Nossa intimidade caminhava rapidamente, mesmo sem a gente esperar. Quando um cego nos pediu esmola, dei dois reais. É meu hábito, sempre dou duzentos réis. Ele deu uma prata de dois mil réis, não sei se por veneta ou porque não tinha mais miúdo. Conversamos pouco; não havia assunto.
À noite, depois do jantar, fomos ao cinema. Outra vez me voltou a inquietude que sentira pela manhã. Por coincidência, ele ficou sentado junto a duas mocinhas que eu conhecia vagamente, por serem amigas de uma prima que tenho no subúrbio. Temi que ele fosse inconveniente; eu ficaria constrangido. Vigiei-o durante a metade da fita, mas ele estava sossegado em sua cadeira; tranqüilizei-me. Foi então que reparei que ao meu lado esquerdo sentara-se uma moça que me pareceu bonita. Observei-a na penumbra. A sua pele era morena, e os cabelos quase crespos. Sentia a tepidez de seu corpo. Ela acompanhava o filme com muita atenção. Lentamente, toquei o seu braço com o meu; era fácil e natural; isto sempre acontece por acaso com as pessoas que estão sentadas juntas no cinema. Mas aquela carícia banal me encheu as veias de desejo. Suavemente deslizei a minha mão para a esquerda. A moça continuava olhando para o filme. Achei-a linda e tive a impressão de que ela sentia como eu estava emocionado, e que isto lhe dava prazer.
Mas neste momento, ouço um pequeno riso e viro-me. Bebu está me olhando. Na verdade não está rindo; está sério. Mas em seus olhos há uma qualquer malícia. Envergonhei-me como uma criança. A fita acabou e não falamos no incidente. Eu fui para o jornal fazer o plantão da noite.
Só conversamos à vontade pela madrugada. A madrugada tem uma hora neutra que há muito observo. Não sei situá-la bem no relógio. É quando passo a tarde toda trabalhando e depois ainda trabalho até a meia-noite na redação. Estou fatigado, mas não me agrada dormir. E aí que vem hora neutra.Eu e Bebu ficamos diante de uma garrafa de cerveja em um bar qualquer. Bebemos lentamente sem prazer e sem aborrecimento. Na minha cabeça havia uma vaga sensação de efervescência, alguma coisa morna, como um pequeno peso. Isto sempre me acontece; é a madrugada, depois de um dia de trabalheiras cacetes. Conversamos não me lembro sobre o quê. Pedimos outra cerveja. Houve um momento em que olhei sua cara banal, seu ar de burocrata avariado, e disse:
- Bebu, você não parece o Diabo. É apenas, como se costuma dizer, um pobre-diabo. - Ele me fitou com seus olhos escuros e respondeu: - Um pobre-diabo é um pobre DEUS que fracassou. - Disse isso sem solenidade nenhuma, como se não tivesse feito uma frase. De repente me perguntou se eu acreditava no Bem e no Mal. Não respondi; eu não acreditava.
Mas a nossa conversa estava ficando ridícula. Desagradava-me falar sobre esses assuntos vagos e solenes. Disse-lhe isto, mas ele não me deu a menor atenção. Grunhiu apenas: - Existem. - Depois afrouxou o laço da gravata e falou: - Há o Bem e o Mal, mas não é como você pensa. Afinal quem é você? Em que você pensa? Com certeza naquela moça que vende cigarros, de olhos de garapa, de cabelos castanhos...
Estas palavras de Bebu me desagradaram. Ele dissera exatamente como por acaso: aquela moça de olhos de garapa. . . Era assim que eu me exprimia mentalmente, era esta a imagem que me vinha à cabeça sempre que pensava nos olhos daquela senhorita.
Sei que não é uma comparação nova; há muitos olhos que tem aquela mesma cor meio verde, meio escura, de caldo de cana;olhos doces, muito doces; e muitas pessoas já notaram isso; e até eu pareceque já vi essa imagem em uma poesia, não lembro de quem. Mas a coincidência era alarmante; não podia ser coincidência. O Bebu lia o meu pensamento, e, o que era pior, lia sem nenhum interesse, como se lê um jornal de anteontem. Isso me irritou:
- Ora, Bebu, não se trata de mim. Você estava falando do Bem e do Mal. Uma conversa besta. . .
- Ele não ligou... – e disse: - Está bem, Rubem: o Bem e o Mal existem, fique sabendo. Você morou muito tempo em São José do Rio Branco, não morou? - Estive lá quase dois anos – respondi. Trabalhava com meu Tio. Um lugarzinho parado. . - Bem. Lá havia um Prefeito, um velho prefeito, o Coronel Barbirato. Mas o nome não tem importância. Imagine isto: uma cidade pequena onde há sempre um prefeito.Esse Prefeito nunca será deposto, nunca deixará de ser reeleito. Sempre será o Prefeito. E há também um homem que lhe faz oposição. Esse homem uma vez quis depor o prefeito, mas foi derrotado e o será sempre. O povo da cidade teme, aborrece, estima, odeia o prefeito; não importa. Pois é isto.
- Bebu pôs mais um pouco de cerveja no copo e continuou falando:
- É isto: o Bem e o Mal. O Prefeito acha que os bancos do jardim devem ser colocados diante da Igreja: isto é o Bem. O homem da oposição acha que eles devem ficar em volta do coreto? Isto é o Mal. Entretanto. . . - Bebu – deixe de ser chato.
- Não amole. Você sabe a minha história. Fiz uma revolução contra Deus. Perdi, fui vencido, fui exilado; nunca tive e nem implorei anistia. Deus me venceu para todos os séculos, para a eternidade. É o Prefeito eterno, ninguém pode fazer nada. Agora, se tem coragem, imagine isto: eu saio de meu inferno uma bela tarde, junto todo o meu pessoal, faço uma campanha de radiodifusão, arranjo armamento, vou até o Paraíso e derroto aquele patife. Expulso de lá aquela canalhada toda,aquelas onze mil virgens, aquela santaria imunda. O que acontece?
- Eu não respondi. Irritava-me aquele modo de Bebu de falar.Bebu continuou com mais veemência: - Acontece isto – seu animal: não acontece nada! Você reparou quando uma revolução vence? Os homens se renderão diante do fato consumado. O Bem será o Mal, e o Mal será o Bem. Quem passou a vida adulando Deus irá para o inferno para deixar de ser imbecil. Eu farei a derrubada: em vez de anjinhos, os capetinhas; em vez de santos, os demônios. Tudo será a mesma coisa, mas exatamente o contrário. Não precisarei nem modificar as religiões. Só mudar umas palavras nos livros santos: onde estiver “não”, escrever “sim”, onde estiver “pecado”, escrever “virtude”. E o mundo tocará para frente. Vocês não seguirão a minha Lei, assim como nunca seguiram e não seguem a dele; não importa, será sempre a Lei. - Eu me sentia atordoado. Percebi que lá fora, na rua, as lâmpadas se apagavam e murmurei: "seis horas". Bebu falava com um ar de desconsolo: - Mas não pense nisso. Aquele patife está firme. É possível depô-lo.Impossível! Impossível.. - Olhei a sua cara. Dentro de seus olhos, no fundo deles, muito longe, havia um brilho.
Era uma pequena, miserável esperança, muito distante, mas todavia irredutível. Senti pena do Bebu. É estranho, eu não posso olhar uma pessoa assim no fundo dos olhos, sem sentir pena. Fui consolando: - Enfim, meu caro, não adiantaria coisa alguma. Você como está, vai bem. Tem seu prestigio. . .
Ele estourou:
- Eu estou bem? Canalha! Pensa que quando me revoltei foi à toa? Conhece o meu programa de governo? sabe quais foram os ideais que me levaram à luta? Pode explicar por que, através de todos os séculos , desde que o mundo não era mundo até hoje, até sempre, fui eu, Lúcifer, o único que teve peito pra se revoltar? Você sabe que, modéstia a parte, eu era o melhor da turma.Eu era o mais brilhante, o mais feliz, o mais puro, era feito de Luz. Por que é que me levantei contra ele, arriscando tudo? O governo atual diz que eu fui movido pela ambição e pela vaidade. Mas todos os governos dizem isto de todos os revolucionários fracassados! Olhe,Rubem, você é tão burro que eu vou lhe dizer. Esta joça não ficava assim não. Eu podia lhe contar o meu programa; não conto, não conto porque não sou nenhum desses políticos idiotas que vivem salvando a pátria com suas plataformas. Mas reflita um pouco, meu animal. Deus me derrotou, me esmagou, e nunca nenhum vencedor foi mais infame para com um vencido. Mas pelo amor que você tem a esse canalha, diga-me: o que é que ele fez até agora? A vida que ele organizou e que ele dirige não é uma miséria? – uma porca miséria? Você sabe perfeitamente disto. Os homens não sofrem, não se atrapalham,não se matam, não vivem fazendo burradas? É impossível esconder o fracasso. Deus fracassou, fracassou mi-se-ra-vel-men-te! E agora, vamos,me diga: por pior que eu fosse, acha possível camarada, acha possível que eu organizasse um mundo tão ridículo, tão sujo?
- Não respondi nada a Bebu. Esvaziamos em silêncio o último copo de cerveja. Eu ia pedir outra, mas refleti amargamente que não tinha mais dinheiro no bolso. Ele, por sua vez, constatou o mesmo. Saímos. Lá fora já era dia:
- Puxa vida! Que sol claro, Bebu! Isto deve ser sete horas.
Andamos até a esquina da avenida.
Ele me perguntou?
Andamos até a esquina da avenida.
Ele me perguntou?
- Onde é que você vai?
– Vou dormir. E você?
Bebu me olhou com seus olhos escuros e respondeu com um sorriso de anjo:
- Vou à missa. . .
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Nota: encontrei essa crônica com dois títulos:
Na Hora Neutra da Madrugada - em: A Palavra é... Mistério (org. por Ricardo Ramos)- E. Scipione
Eu e Bebu Na Hora Neutra da Madrugada - em 200 crônicas escolhidas,as melhores de Rubem Braga. (Ed.Record)
– Vou dormir. E você?
Bebu me olhou com seus olhos escuros e respondeu com um sorriso de anjo:
- Vou à missa. . .
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Nota: encontrei essa crônica com dois títulos:
Na Hora Neutra da Madrugada - em: A Palavra é... Mistério (org. por Ricardo Ramos)- E. Scipione
Eu e Bebu Na Hora Neutra da Madrugada - em 200 crônicas escolhidas,as melhores de Rubem Braga. (Ed.Record)
Olá,
ResponderExcluirMe senti honrada. Peço que fique à vontade para fazer correções, criticas mesmo que não elogiosas, sugestões também. Estou seguindo seu blog. beijo.
Cara Regina, obrigado pelo conto publicado. Eu estava à procura dele, por indicação de uam amiga, e o encontrei aqui. O engraçado é que escrevi um "Desabafo de Lúcifer" sem conhecer este texto de Rubem Braga, mas ideias são semelhantes (sendo o dele muito, muito melhor, claro).
ResponderExcluirEis o meu continho
http://www.cwanascimento.blogspot.com.br/2012/05/o-desabafo-de-lucifer.html
Abraço!!
Clístenes
Olá,
ResponderExcluirVisitei e gostei de seu blog. Também gostei de seu Desabafo de Lúcifer.
abraço,
Regina
Olá Regina
ResponderExcluirAdmiro que tenha postado esta crônica , é muito interesante e tambem foi ultil para a diciplina de Literatura , pois a estava procurando
Em relação a seu blog , é muito bom e tem um escelente conteudo
Abraços
Mb
Olá,
ResponderExcluirRubem Braga o o pai de todos os cronistas brasileiros.
Obrigada pela visita, abraço