Na A Arte de Furtar, que ultimamente tanto barulho causou entre os eruditos, há um capítulo, o
quarto, que tem como ementa esta singular afirmação: “Como os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões.”
Não li o capítulo, mas abrindo ao acaso um exemplar do curioso livro, achei verdadeira a coisa e boa para justificar a publicação destas despretensiosas “Notas”.
A Bruzundanga fornece matéria de sobra para livra-nos, a nós do Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais completos. Sua missão é, portanto, como a dos “maiores” da Arte, livra-nos dos outros, naturalmente, menores.
Bem precisados estávamos nós disto quando temos aqui ministros de Estado que são simples caixeiros de venda, a roubar-nos muito modestamente no peso da carne-seca, enquanto a Bruzundanga os tem que se incubem unicamente, no seu ofício de ministro, de encareceram o açúcar no mercado interno, conseguindo isto com o vend6e-lo abaixo do preço da usina aos estrangeiros. Lá chama-se a isto prover necessidades públicas; aqui, não sei que nome teria...
E semelhante ministro daqueles “maiores” de que a Arte nos fala, destinados a ensinar-nos como nos livrar dos nossos modestos caixeiros de mercearias ministeriais.
Não contente com ter dessas coisas, a Bruzundanda possui outras muitas que desejava enumerar todas, pois todas elas são dignas de apreço e portadoras de ensinamentos proveitosos.
Como não poderíamos aproveitar aquele caso de um doutor da Bruzundanga, ele mesmo açambarcador de cebolas, que vai para uma comissão, nomeada para estudar as causas da carestia da vida e propõe que se adotem leis contra os estancadores de mercadorias?
É que este doutor dos “maiores” de que nos fala o célebre livrinho sabia perfeitamente que não estancava e tinha o hábito de reservas mentais. Não açambarcava, mas “aliviava” logo uma grande porção de mercadorias para o estrangeiro, por qualquer coisa, de modo que... Le pouvre homme! Podia até iludir o nosso pobre Beckman!
Com este exemplo, os menores daqui poderão ser denunciados por este grandalhão de lá, tão generoso e desinteressado, e o nosso povo poderá livrar-se dele.
Conheci na Bruzundanga um rapaz (creio que está nas “Notas”), de rabona de sarja e ares de familiar do Santo Ofício, mas tresandando a Comte, senão a anticlericalismo, que, de uma hora para a outra, se fez reitor do Asilo dos Enjeitados, apandilhado com padres e frades, depois de ter arranjado um rico casamento eclesiástico, a fim de ver se, com o apoio da sotaina e do solidéu, se fazia ministro ou mesmo mandachuva de República. Que “maior” não acham?
E aquele que, tendo sido ministro do imperador da Bruzundanga e seu conselheiro, se transformou em açougueiro para vender carne aos vizinhos a dez réis de mel coado, graças às isenções que obteve com o prestígio do seu nome, dos seus amigos, da sua família e das suas antigas posições enquanto os seus patrícios pagavam-lhe dobro?
Quantos exemplos de lá, bem grandes, nos irão precaver contra pequeninos de cá... A Arte fala a verdade...
Outra coisa curiosa da Bruzundanga, das grandes, das extraordinárias, é a sua “Defesa Nacional”.
Lá, como em toda a parte, se devia entender por isso a aquisição de armamentos, munições, equipamentos, adestramento de tropas, etc.; mas os doges do Kaphet (vide texto) entenderam que não; que era dar-lhes dinheiro, para elevar artificialmente o preço da sua especiaria. De que modo? Retendo o produto, proibindo-lhe a exportação desde certo limite, conquanto se houvessem tenazmente oposto a se semelhante medida fosse tomada no que toca às utilidades indispensáveis à nossa vida: cereais, carnes, algodão, açúcar, etc.
É preciso notar que tais utilidades, como já fiz notar, iam para o estrangeiro por metade do preço, menos até.
Aprendemos por aí a conhecer os nossos “menores".
Poderia muito bem falar de outros grossos casos de lá, capazes de nos livrar dos tais pequenos daqui; mas, para quê?
As páginas que se seguem vão revelá-los e eu me dispenso de narrá-los neste curto prefácio. Pobre terra da Bruzundanga! Velha, na sua maior parte, como o planeta, toda a sua missão tem sido criar a vida e a fecundidade para os outros, pois nunca so que nela nasceram, os que nela vivem, os que a amaram e sugaram-lhe o leite, tiveram sossego sobre o seu solo!
Ainda hoje, quando o geólogo encontra nela um queixal de Megatherium ou um fêmur de Propithecus, tem vontade de oferecer à Minerva uma hecatombe de bois brancos!
Vivos, os bons são tangidos daqui para ali, corridos, vexados, se têm grandes ideias; mortos, os seus ossos esperam que os grandes rios de Bruzundanga os levem para fecundar a terra dos outros, lá embaixo, muito longe...
Tudo nela é caprichoso, é vário e irregular. Aqui terreno fértil, úbere; acolá, bem perto estéril, arenoso.
Se a jusante sobra cal, falta água; se há para montante, falta cal...
As suas florestas são caprichosas também; as essências não se associam. Vivem orgulhosamente isoladas, tornando-lhes penosa a exploração. Aqui está uma espécie e outra semelhante só se encontrará mais além, distante... Envelheceu, está caduca e tudo que vem para ela sofre-lhe o contágio da sua antiguidade: caduquece!
Contudo, e talvez por isso mesmo, os seus costumes e hábitos podem servir-nos de ensinamento, pois conforme a A Arte de Furtar diz: “os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões”.
Por intermédio dos dela, dos dessa velha e ainda rica terra da Bruzundanga, livremo-nos dos nossos: é o escopo deste pequeno livro.
Lima Barreto
Todos os Santos, 2/9/1917
Nota do blog: Encontrei mais de um livro com o título Arte de Furtar:
Aurores: Padre Antônio Vieira, João Ubaldo Ribeiro e um Anônimo do sec. XVIII
Comentários
Postar um comentário
comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.