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Esparadrapo, Carlos Drummond de Andrade

 Aquele restaurante de bairro é do tipo simpatia/classe média. Fica em rua sossegada, é pequeno, limpo,
cores repousantes, comida razoável, preços idem, não tem música de triturar os ouvidos. O dono senta-se à mesa da gente, para bater um papo leve, sem intimidades.

Meu relógio parou. Pergunto-lhe quantas horas são.

– Estou sem relógio.

– Então vou perguntar ao garçom.

Ele também está sem relógio.

– E o colega dele, que serve aquela mesa?

– Ninguém está com relógio nesta casa.

– Curioso. É moda nova?

– Antes de responder, e se o senhor permite, vou lhe fazer, não propriamente um pedido, mas uma sugestão.

– Pois não.

– Não precisa trazer relógio, quando vier jantar.

– Não entendo.

– Estamos sugerindo aos nossos fregueses que façam este pequeno sacrifício.
– Mas o senhor podia explicar…

– Sem querer meter o nariz no que não é da minha conta, gostaria também que trouxesse pouco dinheiro, ou antes, nenhum.

– Agora é que não estou pegando mesmo nada.

– Coma o que quiser, depois mandamos receber em sua casa.

– Bem, eu moro ali adiante, mas e outros, os que nem se sabe onde moram, ou estão de passagem na cidade?

– Dá-se um jeito.

– Quer dizer que nem relógio nem dinheiro?

– Nem jóias. Estamos pedindo às senhoras que nao venham de jóia. É o mais difícil, mas algumas estão atendendo.

– Hum, agora já sei.

– Pois é. Isso mesmo. O amigo compreende…

– Compreendo perfeitamente. Desculpa ter custado um pouco a entrar na jogada. Sou meio obtuso quando estou com fome.

– Absolutamente. Até que o amigo compreendeu sem que eu precisasse dizer tudo. Muito bem.

– Mas me diga uma coisa. Quando foi isso?

– Quarta-feira passada.

– E como foi, pode-se saber?

– Como podia ser? Como nos outros lugares, no mesmo figurino. Só que em ponto menor.

– Lógico, sua casa é pequena. Mas levaram o quê?

– O que havia na caixa, pouquinha coisa. Eram 9 da noite, dia meio parado.

– Que mais?

– Umas coisinhas, liquidificador, relógio de pulso, meu, dos empregados e dos fregueses.

– An. (Passei a mão no pulso, instintivamente.)

– O pior foi o cofre.

– Abriram o cofre?

– Reviraram tudo, à procura do cofre. Ameaçaram, pintaram e bordaram. Foi muito desagradável.

– E afinal?

– Cansei de explicar a eles que não havia cofre, nunca houve, como é que eu podia inventar cofre naquela hora?

– Ficaram decepcionados, imagino.

– Não senhor. Disseram que tinha de haver cofre. Eram cinco, inclusive a moça de bota e revólver, querendo me convencer que tinha cofre escondido na parede, no teto, embaixo do piso, sei lá.

– E o resultado?

– Este – e baixou a cabeça, onde, no cocuruto, alvejava a estrela de esparadrapo.

– Oh! Sinto muito. Não tinha notado. Felizmente escapou, é o que vale. Dê graças a Deus por estar vivo.

– Já sei. Sabe que mais? Na polícia me perguntaram se eu tinha seguro contra roubo. E eu pensando que meu seguro fosse a polícia. Agora estou me segurando à minha maneira, deixando as coisas lá em casa e convidando os fregueses a fazer o mesmo. E vou comprar um cofre. Cofre pequeno, mas cofre.
– Para que, se não vai guardar dinheiro nele?

– Para mostrar minha boa-fé, se eles voltarem. Abro imediatamente o cofre, e verão que não estou escondendo nada. Que lhe parece?

– Que talvez o senhor precise manter um estoque de esparadrapo em seu restaurante.

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