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O Comedor de Criancinhas, Francisco Bosco

     Michael Jackson é o primeiro transracial da história. É claro que houve, antes dele, negros modificando a aparência a fim de tornarem-se brancos. Houve, há e haverá, enquanto existir um sistema cultural que acredite em raças e postule a superioridade de uma raça em relação às outras. Antes do avanço das técnicas cirúrgicas e cosméticas, as modificações eram contudo menos drásticas, pelo menos do ponto de vista dos resultados: passava-se a ferro o cabelo, para alisá-lo, cobria-se o rosto de pó-de-arroz, clareavam-se os pêlos. Para ficarmos no mundo do showbiz norte-americano, Little Richard, na década de 1950, passava pó-de-arroz, desenhava as sobrancelhas e usava batom. Pouco antes de Michael, sua madrinha de carreira  artística - e depois desafeto - , Diana Ross, valendo-se já dos avanços na medicina estética, fez plástica para afinar o nariz. Hoje assistimos, sem qualquer assombro, negras louras como Mariah Carey ou Beyoncé Knowles: louras de cabelo liso e traços finos.

     Mas o sentido e, consequentemente, o resultado dessas transformações é uma espécie de beleza negra com traços brancos, o que significa dizer: uma negritude atenuada. Aqui se revela um hipocrisia gritante do multiculturalismo contemporâneo: dos desenhos japoneses, em que os heróis são orientais de olhos enormes, passando pela  Miss Universo 2006, a porto-riquenha Zuleyka Rivera, até a estrela chinesa Zhang Zhyi ( de O tigre e o dragão e O clã das adagas voadoras) o que se nota é que a beleza de todas as "raças" é admitida desde que seja mediada por traços ocidentais. Em outras palavras, isso quer dizer que o japonês será tanto mais bonito quanto mais ocidental e menos japonês ele for, o negro idem, o chinês também etc. Em suma, o multiculturalismo estático é, em sentido profundo, a negação da diversidade das culturas. Michael Jackson, entretanto, não é um negro que quis dar-se traços brancos, a fim de chegar a uma economia ideal de beleza negra suavizada. Suas intervenções, cirúrgicas e cosmetológicas, se tornaram peculiares por seu caráter infinito, processo que o conduziu para além da normalidade estética, Michael não quer se adequar a um padrão. Ele não é, segundo o modelo da cultura norte-americana, bonito. Seu corpo rumou para além de qualquer "raça" (ele já não é negro, nem branco, nem mulato), para além do sexo, da idade etc. O transracialismo de Michael Jackson é singular.Nele, o prefixo "trans-" não se dirige a uma forma reconhecível, ideologicamente adequada, mas a um work in progress em que, no limite é a própria categoria de humano que está em jogo.  

     Por sua estranheza, é esperado que um tal transracialismo provoque incômodo. Mas a reação a ele por parte de muitos norte-americanos mais se assemelha a um massacre. é chamado, agressivamente,  de Wacko Jacko (algo como "esquisitão", "bizarro"), há inúmeros sites na internet ridicularizando suas metamorfoses e seu comportamento idiossincrático, foi acusado, em 2003, por diversos crimes, todos envolvendo abuso sexual de crianças. em  1993 houve um acordo extrajudicial com a família do acusador - os valores nunca foram revelados - que livrou o cantor de um processo. Em 2003, como costuma ocorrer na cultura norte-americana que dramatiza suas questões fundamentais judicialmente ( Margo Jefferson, do The New York Times, observa com perspicácia que o advogado de defesa, famoso e dispendioso, é tão típico da mitologia norte-americana quanto o caubói), Michael se viu envolvido numa teia de dez acusações e um promotor apelidado de "cachorro louco", tendo sua vida privada transformada em espetáculo público comparável a uma malhação do Judas em escala mundial.  Ao fim do processo , em 2005, Michael Jackson foi inocentado de todas as acusações.

     Tenha sido feita ou não justiça, importa notar que não há duvidas quanto ao fato de que Michael foi julgado, não apenas pelos supostos crimes de pedofilia, mas por seu comportamento como um todo. Por seu gênero indefinido, nem homem nem mulher, por sua sexualidade incompreensível ( não se sabe por que meios ele teve seus filhos, nem mesmo se são de fato seus, já que são todos brancos; e, quando perguntado, na famosa entrevista de 1993 a Oprah Winfrey, se era virgem, recusou-se a responder diretamente, preferindo declarar, de modo elusivo, que é "um cavalheiro"), por sua reclusão radical, por seus complexos infantis, por morar num parque de diversões etc. etc. Assim, a suposta pedofilia foi ao mesmo tempo uma acusação e um pretexto, um processo e uma sentença, uma vingança e uma catarse coletiva.  Mas por que tamanho ódio a Michael Jackson? Afinal, trata-se de um gênio indisputável. Ele fundiu a disco music  com o soul e o rock; inventou uma assinatura corporal e criou o Moonwalk, um dos passos mais célebres, senão o mais célebre, do mundo; revolucionou a linguagem do videoclipe; detém vários recordes, entre eles o de disco mais vendido da história ( Thriller, 50 milhões de cópias, aproximadamente). 

     Por que odiar um artista que tanto contribuiu à sua cultura? Por que as pessoas não conseguem olhar para ele como fez o artista Keith Haring, que, numa observação escrita em seu diário, em 1987, diz: "Tenho falado sobre meu respeito pela tentativa de Michael Jackson de tomar a criação nas própria mãos e inventar uma criatura não-negra, não-branca, não-masculina, não-feminina utilizando a cirurgia plástica e a tecnologia moderna. Ele desbancou completamente Walt Disney! Um fenômeno interessante, para não dizer mais. Um pouco assustador, talvez, mas mesmo assim notável, e acho que, de algum modo mais saudável do que Rambo ou Ronald Reagan. Ele negou a finalidade da criação de Deus e a tomou nas mãos durante todo o tempo desfilando diante da cultura pop americana. Acho que seria muito legal se le fosse até o fim e fizesse as orelhas pontudas, acrescentasse uma cauda, ou coisa parecida. Mas dêem um tempo a ele!"? Por que, afinal, não o deixar fazer o que bem entender com a própria vida?

     A causa do ódio de muitos norte-americanos a Michael Jackson é a sua transracialismo. Diferentemente de Beyoncé ou de todos os casos em que negros querem tornar-se belos, isto é, brancos, ou melhor, negros amenizados, Michael recusa, a um tempo, o negro, o branco, a normalidade, a ideologia e a cultura. Os negros wannabe , que querem amenizar suas características raciais - como Spike Lee mostrou em School daze - angariam o desprezo dos negros black power, que querem radicalizar, orgulhosamente, seus traços definidores da negritude. Trata-se de um problema de auto-representação dos negros. Mas tanto uns como os outros não ameaçam a ideologia racista norte-americana. Os que têm orgulho de negritude acabam atenuando a sensação social de preconceito ( se têm orgulho é, afinal, porque a sociedade é livre e aberta) e os que querem ser brancos confirmam a ideologia, subscrevem-na, não a contestam. E ainda apresentam corpos esteticamente lindos para a hipocrisia multicultural, conferindo a tudo uma impressão apaziguadora, como se o resultado final da negritude amenizada anulasse o preconceito brutal que está em sua origem.

    Mas Michael Jackson não produziu em si uma beleza adequada. Ele não suavizou  o nariz, diminuiu um pouquinho os lábios e alisou o cabelo.  Ele não parou. Aí está o problema: sua compulsão cirúrgica é a evidência manifesta da ação do preconceito racial sobre seu corpo. Sua recusa da negritude é tão violenta que ele não pode parar nunca.  Ocorre que essa recusa não é dele, é da cultura norte-americana, e é isso que o corpo de Michael Jackson não cessa de gritar e ninguém quer ouvir. O que fazer então? Ridicularizá-lo, desprezá-lo, acusá-lo, castigá-lo, finalmente prendê-lo: o que significa, culturalmente falando, recalcá-lo, suprimi-lo da consciência, tirar da vista esse corpo que tem a força de uma revelação social insuportável. Corpo que não pode tolerar em si nenhum resíduo de negritude, mas que também não pode ser, propriamente, branco, que é a cor da ideologia que está na origem de seu mal. É um corpo que não consegue se identificar, seja como agredido, seja como agressor. Por isso não pode parar.  é um corpo sem repoiso, sem identidade possível. Daí que a perspectiva de Keith Haring, se por um lado tem a imensa vantagem de não se situar do lado da acusação, por outro lado não consegue ver a negatividade radical que impulsiona as metamorfoses de Michael Jackson: seu corpo não é afirmativo, ele procura se livrar desesperadamente de uma violência insuperável.

    Com efeito, a partir de um certo momento sua vida virou atualização permanente de uma espécie de trauma, por compensação ou recusa desesperada. Tendo começado a trabalhar arduamente aos cinco anos de idade, não é de espantar que tenha construído um parque de diversões onde, declarou,  brinca todos os dias, já que não podia fazer isso nunca na infância. Identifica-se com personagens da cultura norte-americana que ou foram vítimas  de um processo cruel - como o homem-elefante, cujos ossos ele teria tentado comprar junto ao Museu Britânico - ou foram astros mirins, como Macaulay Culkin, um dos seus "melhores amigos". Passa a viver, portanto, dos traumas do preconceito e da infância sacrificada. Sua vida é aprisionada numa mutação negativa. Ter entrado para os Jackson Five aos cinco anos significa que Michael, como o Truman de Milos Forman, nunca conheceu outra vida que não a representação de sua própria vida. A realidade para ele é o mundo do espetáculo norte-americano. Mergulhou, sem filtros, num sistema ideológico de que ao mesmo tempo foi rei e vítima. O "rei do pop" é inteiramente  absorvido pelos valores do mundo por. O tiro saiu pela frente e pela culatra. artista genial e intuitivo, sua capacidade de simbolização é nula - ele é de uma fragilidade comovente. Não pôde, mesmo já consagrado, proteger-se dos danos da cultura que ele produziu e pela qual foi produzido. Nele o sucesso é proporcional ao fracasso: quanto mais criava aquele mundo, mais era vítima dele. As contas estão chegando até hoje. E não vão parar. 

    Na canção  "Black or White"ele declara: I'm not gonna spend my life being a color" [ não vou passar a minha vida sendo uma cor]. Seu paradoxo trágico, contudo, é que quanto mais ele reinventa mais ele se aferra a si, à sua negatividade desesperada, e quanto mais tenta apagar as pistas raciais de seu corpo, mais se torna a evid6encia manifesta, não de uma raça, mas da raça como problema.  Margo Jefferson, em seu Para Entender Michael Jackson, diz que "o estado de Michael fez com que todas as antigas metáforas que acusavam negros de odiar a sua cor se tornassem obsoletas".  é verdade, o corpo de Michael revela uma recusa sem precedentes à "raça negra", mas por isso mesmo, pelo desespero que o levou à desfiguração, denuncia e demonstra o caráter profundamente racista da cultura norte-americana - e é por trazer à toa, afinal, que o imenso artista Michael Jackson é imperdoável.

Em: Banalogias, Francisco Bosco, págs. 23-30

Nota: o livro antes da reforma ortográfica e o  blog manteve a grafia da época.


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