Pular para o conteúdo principal

Eulália, Rogaciano Leite

 

Deixei-a solitária, por uns dias,

Enquanto melhorava do ciúme,

E saí pra evitar muitas porfias

Que entre nós já se davam — de costume.

 

Nesse tempo eu andava arrumado!

As brigas entre nós, frequentemente,

Transformaram a abelha do passado

Numa aranha de dor — sempre presente!

 

Então o inseto que fazia, outrora,

Mel de carícias na feliz colmeia,

Vinha fazendo entre nós dois, agora,

O fel da vida — numa horrível teia!

 

Corri mundos... andei por terra estranha

Procurando renúncia, esquecimento...

Mas dia-a-dia se infiltrava a aranha

Na teia enorme do meu pensamento!

 

Mandava-lhe presentes de onde estava,

Escrevia-lhe cartas carinhosas

Pedindo que esperasse que eu voltava

E novamente nasceriam rosas...

 

Mas, uma noite, (Triste noite, amigo!)

Eu entrei num Cassino.. . (Que amargura!)

Ai! Não chores de ouvir o que te digo

Nem te rias da minha desventura!

 

A sala estava cheia do cinismo

Dos que, no vício, vão matar a sede. ..

Era um antro de fumo e de alcoolismo,

Com visões sensuais pela parede!

 

Um perfume de bétulas e sândalos

Rescendia da carne em sedas finas,


E a luz — envergonhada dos escândalos —

Parecia tremer... sob as cortinas!

 

A dona do Cassino, a abelha-mestra

Do cortiço infeliz, torpe e devasso,

Dava bebida aos maganões da orquestra

E mandava agitar sempre o compasso...

 

Enquanto os instrumentos gargalhavam

Na frivolência do pagode insano,

Eu distinguia as notas que choravam

Nas cordas ultrajadas de um piano!

 

Mais tarde, (Era o intervalo do pecado!)

Enquanto a orquestra demorava o ensaio,

A pianista, curvando-se ao teclado,

Dedilhava a canção ROSA DE MAIO...

 

Era aquela canção — quando partimos —

A que Eulália tocava todo mês...

Pois foi no mês de maio que nos vimos,

Eulália e eu — pela primeira vez!

 

Recordação. .. Saudade... Sofrimento...

Aproximei-me sem saber por quê...

— Era Eulália que estava no instrumento!

Sim, Eulália... vestida de "soirée"!

 

Quando me viu eu vi também seu vulto

Afogar-se nas brumas de um desmaio...

E até hoje em minh'alma um piano oculto

Vive sempre a tocar ROSA DE MAIO!...


Fonte: blog Antonio Miranda

 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Aprenda a Chamar a Polícia, Luis Fernando Veríssimo

          Eu tenho o sono muito leve, e numa noite dessas notei que havia alguém andando sorrateiramente no quintal de casa. Levantei em silêncio e fiquei acompanhando os leves ruídos que vinham lá de fora, até ver uma silhueta passando pela janela do banheiro.                   Como minha casa era muito segura, com  grades nas janelas e trancas internas nas portas, não fiquei muito preocupado, mas era claro que eu não ia deixar um ladrão ali,espiando tranquilamente. Liguei baixinho para a polícia, informei a situação e o meu endereço. Perguntaram- me se o ladrão estava armado ou se já estava no interior da casa.            Esclareci que não e disseram-me que não havia nenhuma viatura por perto para ajudar, mas que iriam mandar alguém assim que fosse possível. Um minuto depois liguei de novo e disse com a voz calma: - Oi, eu liguei há pouco porque tinha alguém no meu quintal. Não precisa mais ter pressa. Eu já matei o ladrão com um tiro da escopeta calibre 12, que tenho guard