Em 1952 durante a ação de caça às bruxas no governo Vargas, João Cabral e mais quatro colegas foram acusados de subversão, graças a um "amigo" que, remexendo nas gavetas de seu escritório, encontrou o rascunho de uma carta dirigida a um deles. Nessa carta, meu pai pedia um artigo sobre a disputa pelo mercado brasileiro entre os ingleses, alemães e japoneses. Esse documento foi entregue pelo "amigo" que o subtraiu ao Itamaraty e acabou nas mãos de Carlos Lacerda, que o publicou em matéria de capa na Tribuna de Imprensa, no dia 27 de junho do mesmo ano. entre outras barbaridades, o jornal afirmava:
a tipografia passou a servir para imprimir boletins de seus novos "amigos". Valéry já lhe parece uma expressão da burguesia decadente. E quando Moscou pela boca de Aragon, mandou adorar Victor Hugo, ele passou a considerar Victor Hugo seu mestre, o seu modelo. Seus versos estão agora repletos de alusões, são panfletários, ardentes e, por sinal, ruins.
Esses poemas repletos de alusões, panfletários e ruins nunca foram encontrados, nem comentados ou citados por ninguém, a não ser nesse artigo. Deixemos por conta da liberdade de imprensa da época.
Ele e seus colegas foram convocados ao Brasil para responder a um inquérito. Viajar de avião nessa época e a distância era proibitivamente caro, portanto, viajou conosco de navio. Ao entrar nele e ver a sala de jantar, pediu à minha mãe que reservasse uma mesa pequena e discreta, longe do burburinho social e da mesa do comandante. Na hora do jantar, quando entraram no restaurante, ele identificou seu lugar de imediato e se dirigiu para lá. Cheio de preocupação, o maître se aproximou e lhes disse: "Por favor, esta mesa está reservada para um velho diplomata brasileiro, algo neurastênico. Deixem-me indicar-lhes outra". Ao que minha mãe respondeu: Não se preocupe, o velho diplomata neurastênico é ele. Quem reservou a mesa, fui eu. Ele tinha 32 anos.
Durante o processo meu pai e seus colegas foram colocados à disposição sem vencimentos pelo Itamaraty, apesar da inconstitucionalidade do ato. Em 1953, voltou ao Recife conosco, de automóvel.
Volta a Pernambuco
A Benedito Coutinho
Contemplando a maré baixa
nos mangues de Tejipió
lembro a baía de Dublin
que daqui já me lembrou.
Em meio à bacia negra
desta maré quando em cio,
eis a Albufera, Valência,
onde o Recife me surgiu.
As janelas do cais da Aurora,
olhos compridos, vadios
incansáveis, como em Chelsea,
veem rio substituir rio,
e essas várzeas de Tiuma
com seus estendais de cana
vêm devolver-me os trigais
de Guadalajara, Espanha.
Mas as lajes da cidade
não me devolvem só uma
nem foi uma só cidade
que me lembrou destas ruas.
As cidades se parecem
nas pedras do calçamento
das ruas artérias regando
faces de vário cimento,
por onde iguais procissões
de trabalho, sem andor,
vão levar o seu produto
aos mercados do suor.
todas lembravam o Recife,
este em todas se situa,
em todas em que é um crime
para o povo estar na rua,
em todas em que esse crime,
traço comum que surpreendo,
pôs nódoas de vida humana
nas pedras do pavimento.
Em: A Literatura como turismo, João Cabral de Melo Neto - Seleção e texto Inez Cabral
Alfaguara 2016, págs.36-39
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