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Araújo & Ophélia, Ricardo Azevedo (Infantil)


     Os homens de negócios chamaram seus engenheiros e resolveram derrubar as árvores.
     Elas eram velhas, não seriam para nada e naquela praça, quase abandonada, dava para construir um moderno e luxuoso shopping center. A cidade precisa crescer!
     Um velhinho que morava ali perto, quando soube de tudo, tirou o pijama, colocou camiseta branca e calça de brim, vestiu paletó, calçou o tênis e saiu de casa afobado.
     Entrou na praça e foi direto até uma das árvores. Por sorte, ela ainda estava lá, frondosa, imensa e bela como sempre. Era uma mangueira.
     O velho ficou ali um tempão parado, admirando a árvore. Depois, começou a procurar. Agachou-se, ficou em pé, examinou o trono inteiro com cuidado. No fim, num cantinho do lado esquerdo, encontrou uma mensagem escrita a canivete faz tempo.
     - Ufa! ainda bem!
     Um suspiro brotou na boca do homem. Seus olhos ficaram vermelhos de lágrimas. Quem escreveu aquilo foi ele e aquela mensagem era para sua primeira namorada.
     O velho teve uma ideia. Saiu correndo, tomou um ônibus, voltou para casa e foi procurar a lista telefônica: Aurora, Berenice, Clara, Dolores, Elisabete, Francisca, Geraldo, Helena, Isabel, Josefina, Karina, Lúcia, Maria, Neusa... Ophélia! Maria Ophélia Fagundes. É ela mesma! Pegou o telefone e discou.
     - Alô! De onde falam?
     -511507
     - Por gentileza, dona Ophélia está?
     -Pois não, é ela mesma.
     - Ophélia? Sabe quem é? Aqui quem fala é o Araújo... Não sei se voc6e vai lembrar.
     - Minha Nossa Senhora! Claro que lembro!
     - A gente não se vê há uns sessenta anos.
     - Araújo, que bom ouvir sua voz!
     - Que saudade Ophélia. Parece que foi ontem!
     Os dois amigos marcaram encontro. Ficaram um tempão em silêncio, parados, um olhando nos olhos do outro. Quanta coisa para contar, lembrar, revelar, confessar...
     Depois, deram um abraço apertado. E um beijo.
     Araújo contou que era músico aposentado. Durante anos e anos, tocou flauta e saxofone na orquestra da cidade.
     Ophélia sorriu com ar implicante:
     - Quer dizer que agora não tem mais fôlego nem pra tocar flauta?
     - O quê? - perguntou Araújo ofendido. - Está pensando que sou algum velhinho coroca caindo aos pedaços? Espere aí - tirou uma flauta pequena do bolso do paletó. - Quer ver? - e começou a tocar.
     Uma música deliciosa tomou conta do ar. Ophélia ficou quieta só escutando. Seus olhos até cresceram um pouco. Era uma canção antiga do tempo em que era moça.
     A mulher examinou o amigo. Como ele tocava bem! Quanto sentimento! Que técnica apurada! Bateu palmas quando a música acabou:
     - Foi lindo, Araújo! Muito obrigada. Deu até vontade de chorar.
     Ophélia explicou que era professora primária. Dava aulas para as crianças pequenas que ainda não sabiam ler:
     - Dia sim, dia não, faço chamada, pego a turma e ensino como são as letras. Vou mostrando uma por uma devagarinho e eles vão aprendendo. Que beleza ver a criançada gritando: A de abacateiro, E de eucalipto, I de ipê, O de Oliveira...
     - Ophélia contou que era viúva e andava muito triste, pois, naquele ano, teria de se aposentar:
     - Adoro meu trabalho!
     - Araújo segurou a mão da amiga. Lembrou a ela que, por outro lado, com a aposentadoria, ela poderia viajar:
     - Já pensou poder sair por aí e conhecer o Brasil inteiro?
     - Araújo contou a Ophélia o caso da árvore. Falou que iam construir um shopping center. Falou em empresários e engenheiros. Disse que estava revoltado:
     - A gente conversou tanto debaixo daquela mangueira! - exclamou ele. - Fora isso, e as outras árvores da praça? Não. De jeito nenhum! Não podemos permitir. É uma questão de vida ou morte.  Vamos ter de fazer alguma coisa.
     - E o casal de amigos foi à polícia. E reclamou na prefeitura. E enviou cartas revoltadas aos jornais.
     - Nada. Ninguém ligou. ninguém podia ajudar.
     Os caminhões chegavam carregados de alicats, arames, areia, brocas, carrinhos de mão, cavadeiras, chaves de fenda, cimento, cordas enxadas, foices, furadeiras, machados, madeiras marretas, martelos, parafusos, pás, pedras, pés-de-cabra, picaretas, pregos, serras elétricas, serrotes, tachinha, telhas, tijolos e tintas.
     A ordem era derrubar todas as árvores e deixar o terreno limpo.
     O engenheiro-chefe dava as instruções:
     1. Limpar em volta; 2. Tirar o mato, as folhas, as flores e frutos; 3. Arrancar os galhos menores e os ninhos de passarinho de todas as árvores; 4. Jogar fora os ninhos de passarinho; 5. Cortar os galhos maiores; 6. Cuidado com as aranhas e taturanas; 7. Pegar a serra elétrica e cortar os troncos bem embaixo; 8. Enxadas e picaretas para matar as raízes; 9. Juntar os pedaços de tronco, galhos, folhas e frutos no carrinho de mão e jogar no lixo; 10. É tiro e queda; 11. O terreno vai ficar uma beleza; 12. Lisinho.
     - Lisinha é sua careca!
     Os operários levantaram a cabeça. Olharam para a direita. Nada. Olharam para a esquerda. Nada.
     Araújo estava no alto da mangueira, escondido no meio das folhagens.
     - Para derrubar essa árvore vão ter de passar por cima de mim!
     O engenheiro-chefe arregalou os olhos:
     Hã? O quê? Como? Onde? Quem? Quando? Por que?
     Começou a maior discussão.
     - Saia já daí! O senhor não tem juízo? Está ficando maluco? Que história é essa? - gritou o engenheiro.
     - Não desço coisa nenhuma! Voc6es querem derrubar uma árvore de mais de cem anos e eu é que sou maluco?
     - E daí? - perguntou o engenheiro. - No lugar dessas árvores velhas nós vamos colocar um grande prédio. Aqui vai ser construído um shopping center moderno. Um edifício maravilhoso de linhas arrojadas! Desça daí. A cidade precisa crescer!
     - E desde quando crescer é destruir tudo o que está em volta? perguntou Araújo, agarrado num galho lá em cima. - Um shopping center desses se constrói em menos de um ano. Veja o caso dessa mangueira. Uma árvore como essa, meu amigo, para ficar linda assim, demora mais de cem. Sabe o que são cem anos? Não é brincadeira não. Repare a grossura desse tronco! Note os galhos imensos! E como é frondosa! E as frutas? Quando seu avô nasceu, essa árvore provavelmente já estava aqui!
     Araújo agora estava de pé em cima de um galho da mangueira. Falava com alegria, esperança e entusiasmo:
     - Podem pegar suas picaretas, pás, serrotes e tratores e cair fora!
     - Chega de conversa mole - gritou o engenheiro-chefe examinando o relógio. - A obra está atrasada mais de quinze minutos. Vamos Desça imediatamente. Não posso ficar aqui perdendo tempo à toa!
     - Daqui não saio, daqui ninguém me tira... - gritou cantando Araújo, pendurado nos galhos da mangueira feito uma espécie de Tarzan de cabelos brancos e quase sem músculos.
     - Ah é? - ameaçou o engenheiro. - Então vou mandar um pedreiro subir aí em cima para tirar o senhor na marra!
     Pois experimente! Quem subir nessa mangueira leva uma guarda-chuvada no meio da testa!
     - Era Ophélia. Apareceu de surpresa. Também estava escondida entre as folhagens e ninguém tinha visto.
     Um sorriso luminoso apareceu no rosto de Araújo:
      - Suba pra você ver o que é bom pra tosse, desafiou ele olhando para o engenheiro.
     O chefe da obra parou e limpou os óculos.
     Examinou os dois velhinhos trepados na árvore. Consultou o relógio. Balançou a cabeça. Achou melhor mandar chamar a polícia.
     Enquanto isso, começou a juntar gente na praça.
     Eram moradores de vizinhança, pedestres, passantes, motoqueiros e curiosos que escutando o zumzum zum, pararam para ver o que estava acontecendo. Até a equipe de reportagem da televisão apareceu:
     - O que houve? Foi acidente? O que é aquilo ali na árvore?
     A confusão estava armada quando a polícia chegou. O guarda espiou Araújo e Ophélia pendurados no alto da mangueira e tentou botas panos quentes:
     - O que é isso, minha gente? Vamos com calma. Um casal tão distinto. Desçam daí meus senhores. É perigoso ficar aí em cima. Por favor, desçam com cuidado. Vamos conversar, mas tem que ser aqui embaixo...
     Nada de conversar aqui embaixo - respondeu Araújo. - só desço se voc6es prometerem, jurarem, que não vão derrubar nem essa mangueira nem nenhuma outra árvore dessa praça.
     - Não somos contra o crescimento da cidade - explicou Ophélia, se balançando no galho. - Mas é preciso planejar esse crescimento direito. Chegar sem pedir licença e ir derrubando árvores e destruindo a natureza, sem mais nem menos, não dá. Se a natureza é de todos, mexer com ela tm que ser uma decisão tomada por todos também.
     Pra mexer numa praça dessas - continuou Araújo - pra derrubar árvores de mais de cem anos como essa mangueira, antes de mais nada, é preciso fazer uma consulta aos moradores do bairro...
     - E da cidade inteira! - completou Ophélia.
     O engenheiro olhou o relógio de novo e balançou a cabeça. Depois, atirou o charuto no chão e pisou com raiva:
     - Puxa vida! Perder tempo com esses velhos caducos. Olha aqui - gritou ele para o casal encarapitado no alto da mangueira -, ninguém vai mudar o projeto. Ninguém tem o direito de impedir o progresso!
     Isso vai ser um edifício moderníssimo, o mais moderno shopping center da cidade. Vai ter gente morando, lojas, escritórios...
     - Progresso vírgula! - gritou Araújo enfezado. Não é possível chamar a destruição da natureza de progresso!
     O engenheiro colocou as mãos na cintura e riu:
     - Vocês dois sabem para que servem essas árvores? Pois eu vou dizer: pra nada! Essas porcarias verdes e velhas não servem pra nada nem pra ninguém!
     Ao ouvir isso, Araújo e Ophélia ficaram tão furiosos que por pouco não caíram da mangueira.
     - Cala essa boca, seu ignorantão - berrou ele.
     - Minha Nossa Senhora, nunca escutei tanta burrice junta em toda minha vida! - disse ela.
     - Essas árvores são trambolhos inúteis que só ocupam espaço! - continuou o engenheiro-chefe.
     - Não tem função nem dão lucro pra ninguém! Ou seja, não servem para nada. Só quando são cortadas e viram madeira para fazer móveis...
     Uma vozinha chegou pelo ar. Vinha da multidão de curiosos:
     - Moço eu e meu amigo Chico, a gente mora aqui perto e vem aqui na praça. A gente sobe sempre nessa mangueira pra brincar de castelo. Por favor, não derrube ela não.
     Muita gente começou a falar ao mesmo tempo:
     - Todo fim de tarde venho aqui namorar com a Julinha.
     -Quando faz calor eu estudo debaixo dessa sombra gostosa.
     - Jogo damas aqui com outros aposentados.
     - Faço salada de frutas e sorvete com essas mangas.
     - Brinco de homem-macaco nesses galhos!
     - Faço ioga na praça
     - Sou contra derrubar árvores!
     - Estudo desenho copiando estas árvores, as raízes, os troncos, as folhas, as flores e as frutas.
     - Gosto de fazer minhas orações aqui.
     - E eu vou ler jornal onde?
     - Sempre que posso, trago meus alunos e dou aula de biologia aqui mesmo.
     - Quando faço coisa errada costumo vir aqui para me esconder...
     - Todo dia de manhã, faço ginástica pendurado nesses galhos.
     - Eu também e depois corro em volta da praça.
     - Se acabarem com a praça vou ficar sem lugar pra soltar papagaio.
     - Escrevo meus poemas protegido por esse manto verde.
     - Gosto de ficar aqui sem fazer nada.
     - Essa árvore é uma aut6entica Mangifera indica, árvore da família das anacardiáceas.
     - Ela é tão linda...
     - Quando fico nervoso, venho até a praça e sento embaixo de uma árvore até esfriar a cabeça.
     - Faço minhas leituras aqui!
     - Adoro assistir ao pôr-do-sol sentado num banco de praça.
     - Minhas melhores ideias eu tive aqui
     - A gente anda de bicicleta e skate na praça todos os dias.
     - Venho sempre aqui fazer piquenique com minha mulher e meus filhos!
     - Vão dizer que nada disso é importante?
     - Que coisa! Iam derrubando tudo sem perguntar nada pra gente!
     - O guarda olhou para o engenheiro e coçou o queixo.
     - Ainda havia muita gente querendo falar.
     - De repente, um piu piu piu
     - Era um passarinho lá no céu. Veio voando afobado, deu uma reviravolta no ar, foi aterrissando e, de surpresa, fez cocozinho na careca do engenheiro-chefe.
     Todo mundo deu risada
     Era um João-de-barro!
     - Viva! - gritaram todos.
     Foi quando Araújo desceu de árvore, pegou uma flauta e começou a tocar e dançar em volta dela. Ophélia veio atrás e, logo logo, a multidão inteira estava dançando e fazendo um gostoso carnaval.
     O engenheiro não disse nem A nem B. Olhou para o guarda, tirou um lenço do bolso, limpou a careca e foi embora.
     O tempo passou. Até hoje a praça continua igualzinha. Nenhuma árvore foi derrubada. A mangueira centenária continua no mesmo lugar, cada vez maior e mais frondosa. quem quiser encontrar, é fácil. No seu tronco, num cantinho do lado esquerdo está escrito e canivete:


Araújo & Ophélia, Ricardo Azevedo. Ed. Moderna 2013

    

 


    

  




  


     



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