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Mostrando postagens de março, 2021

Tempo Que Passa, Inez Cabral

Anteontem eu tinha dezoito anos. Levei dezoito anos para chegar lá. Pisquei, já tinha trinta. Me assustei um pouco, meus filhos cresciam, mas eram crianças. Fui dormir, acordei usando henna, mais por estética do que para esconder meus cabelos grisalhos. Achei bom, sempre quis ter cabelo colorido. Gostaria de azul marinho, mas no meu tempo isso não existia. Tive que entrar na henna mesmo. Daí, pisquei de novo, e ao me olhar no espelho, meu cabelo estava da cor das labaredas do inferno. Cruzes! Me identifiquei com uma vizinha, recalcada e cruel. Pensei com meus botões: “Não quero ficar assim, vou assumir a minha cor natural.” como se cor de cabelo definisse a pessoa. Não me arrependo, acho que fiquei bem com meu cabelo prateado. Por dentro me sentia igual, achava estranho as pessoas me chamarem de senhora. Sou sedentária de nascença, na escola menstruava quatro vezes ao mês, só para ser dispensada das aulas de ginástica. Um dia em que não pude escapar da tortura, era dia de basquete

Crônica de Eduardo Afonso

  Às vezes eu penso que ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém abre meu fecheclér - ops, ninguém me chama de Baudelaire. Que ninguém liga pra mim. Aí me lembro de que há quem ligue, sim. Todos os dias. Alguém de São Paulo. Que me ama em segredo, em silêncio, como um rio subterrâneo, com a delicadeza sonora das girafas. Que insiste, dia após dia, mas ainda não consegue dizer o indizível, falar do seu amor infalível que todo dia a faz digitar meu número e encontrar conforto em ver meu nome no visor do telefone. Eu, insensível, fujo desse afeto impossível. Mas ela/e/o cria um novo número a cada dia. Hoje ligou do 011 3556 4850. Ontem, do 011 3215 1350. Anteontem, do 011 3201 0663. Tresantontem, do 011 2162 3051. Não sei o que vem antes do tresantontem, mas dia 20 foi do 011 97659 0484 Dia 19, do 011 5601 9732. Dia 18, do 011 3469 7700. E assim, como a águia tentando provar a Prometeu o seu insaciável desejo, como a pedra lembrando Sísifo de que há uma razão para viver, os números sem no

O Que Estou Lendo? Kafka e a Boneca Viajante, Jordi Sierra i Fabra

       Os passeios pelo parque Steglitz eram um bálsamo.      E as manhãs, tão doces...      Casais precoces, casais parados no tempo, casais que ainda não sabiam que eram casais, velhos e velhas com mãos cheias de histórias e rugas cheias de passado procurando cantos de sol, soldados com galas distinção, criadas de uniforme impecável,  babás com meninos e meninas vestidos com esmero, casais com filhos recém-nascidos, casais com  sonhos recém-destruídos, solteiros e solteiras de olhar esquivo, solteiros e solteiras de olhar insinuante, guardas, jardineiros, ambulantes...      O parque Steglitz transpirava vida naquele início de verão.       Um presente. ( Pág.13)  Kafka e a Boneca Viajante , Jordi Sierra e Fabra Ed.Martins Fontes,2006 Páginas 127.

Carrossel do Destino, Antônio Nóbrega e Bráulio Tavares

Deixo os versos que escrevi, as cantigas que cantei, cinco ou seis coisas que eu sei e um milhão que esqueci. Deixo esse mundo daqui, selva com lei de cassino. Vou renascer num menino num país além do mar. Licença, que eu vou rodar, no carrossel do destino Enquanto eu puder viver tudo o que o coração sente, o mundo estará presente passando sem resistir. Na hora que eu for partir para as nuvens do divino, que a viola seja o sino tocando pra me guiar. Licença que eu vou rodar no carrossel do destino. Romances e epopeias me pedindo pra brotar e eu tangendo devagar a boiada das ideias. Sempre em busca das colmeias onde brota o mel mais fino e um só verso, pequenino, mas que mereça ficar. Licença que eu vou rodar no carrossel do destino. Álbum Lunário Perpétuo

In The Time of Pandemic, Kitty O'Meara

  E PENSAR QUE ESSE POEMA FOI ESCRITO EM 1869 (FAKE) Na verdade, o poema foi escrito pela professora aposentada Catherine M. O’Meara, também  conhecida por Kitty O'Meara. Ela publicou o  texto, em inglês, com o título "In the Time of Pandemic"  (Na época da pandemia), em 16 de março de 2020, no blog "The Daily Round". CURAR E as pessoas ficaram em casa E leram livros e ouviram música E descansaram e se exercitaram E fizeram arte e brincaram E aprenderam novas maneiras de ser E pararam E ouviram fundo Alguém meditou Alguém orou Alguém dançou Alguém conheceu sua sombra E as pessoas começaram a pensar de forma diferente E pessoas se curaram E na ausência de pessoas que viviam de maneiras ignorantes, Perigosas, sem sentido e sem coração, Até a Terra começou a se curar E quando o perigo terminou E as pessoas se encontraram Lamentaram pelas pessoas mortas E fizeram novas escolhas E sonharam com novas visões E criaram novos modos de vida E curaram a Terra completament

Música do Mês: Principia, Emicida e Vinicius Leonard Moreira

  Principia Lá-ia, lá-ia, lá-ia Lá-ia, lá-ia, lá-ia Lá-ia, lá-ia, lá-ia Lá-ia, lá-ia, lá-ia Com o cheiro doce da arruda Penso em Buda calmo Tenso eu busco uma ajuda às vezes me vem o Salmo Tira a visão que iluda, é tipo um oftalmo E eu, que vejo além de um palmo Por mim, 'to Ubuntu, ó, uau Se for pra crer num terreno Só no que nós 'tá vendo memo Resumo do plano é baixo, pequeno e mundano Sujo, inferno e veneno Frio, inverno e sereno Repressão e regressão Angústia é eu ter calma e a vida escada tento ler almas pra além da pressão As voz em declive na mão desse Barrabás Onde o milagre jaz Só prova a urgência de livros perante o estrago que um sábio faz O mestre em dívidas avidas Sem noção do que são dádivas No tempo onde a única que ainda corre livre aqui são as suas lágrimas E eu voltei pra acabar tipo infarto Depois fazer renascer, estilo parto Eu me refaço, fato, descarto De pé no chão, homem comum Se a benção vem a mim, reparto Invado cela, sala, quarto Rodeio o globo, hoje &

O Que Estou Lendo?

     É provável que nunca na história tenham sido escritos tantos tratados, ensaios, teorias e análises sobre a cultura como no nosso tempo. O fato é ainda mais surpreendente porque a cultura, no sentido tradicionalmente dado a esse vocábulo, está prestes a desaparecer em nossos dias. E talvez já tenha desaparecido, discretamente esvaziada de conteúdo, tendo sido substituído por outro, que desnatura o conteúdo que ele teve. (pág. 11) ... Otávio Paz indicou com exatidão o caráter efêmero, imediatista, das ações ( ou melhor, simulacros) dos políticos contemporâneos: "Mas a civilização do espetáculo é cruel. Os espectadores não têm memória;  por isso também não têm remorsos nem verdadeira consciência. Vivem presos à novidade, não importa qual, contanto que seja nova. (pág. 45) É certo que as massas acorrerão  para contemplar, ainda que nariz tapado, as obras do jovem Chris Ofili, de 29 anos, aluno do Royal College os Art, astro de sua geração,  segundo um crítico, que monta suas obr

Por que Seres Humanos Não Mudam de Ideia Mesmo Quando Estão Errados? Suzana Valença

       Você está conversando com um grupo de amigos e um deles começa a defender algum argumento político completamente errado. Mas não uma ideia que é ruim porque você acha que ela é ruim. Algo errado mesmo. Então você apresenta os dados científicos, históricos e estatísticos para provar que aquela ideia não está certa. A pessoa não se convence. Você começa a perder a paciência.   “Não é uma questão de opinião, é um fato”. Mas a pessoa insiste. Apela para o “isso é fake news”. O que você faz? Cientistas explicam porque é tão difícil mudar de ideia mesmo sabendo que elas estão erradas Clay Johnson, no livro  A Dieta da Informação , fala sobre como  quanto menos um argumento político é baseado em fatos, mas difícil é mudar esse argumento usando fatos.  Não é louco isso? Pensamos que é o contrário, mas não é. Se eu estou decidindo em que restaurante ir, mas não conheço muito nenhum deles, quanto mais eu souber sobre os estabelecimentos mais minha opinião vai se solidificar sobre o progr

A Cigana e Outras Revelações, Antonio Neto

     Os dias que se seguiram à última Assembleia das  Crianças Inadequadas foram meio tristes, porque nós isolamos o menino que tinha inventado a história de que as mulheres têm vazamento de sangue. Ele ficou tristinho, sozinho. E nós também ficamos chateados, porque é muito ruim ter que deixar alguém de lado... Mas, fazer o quê? Outro fato veio nos trazer preocupação: ficamos sabendo que a Protetora do Jardim Pinheiro estava muito doente. Ela era uma mulher de pele escura, bastante idosa e muito querida por todos, pois era benzedeira. O nome dela era Dona Fia. Ficamos preocupados! O que seria das crianças daquela área sem a proteção dela?  É assim! As pessoas envelhecem e, um dia, partem... Contudo, soubemos que outra Protetora estava sendo preparada para quando Dona Fia partisse. E eu, em particular, fiquei muito feliz; pois quem iria nos auxiliar seria a minha Tia Isabel, meia-irmã do meu pai. Foi assim que, em certa tarde bastante fria, encontramos a Tia Isabel próximo à igrejinha