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Anjo da Guarda de Papel, Elisa Lucinda


Na minha estante mora um moço velho

com cara de rapaz
pela alegria que traz;
Com cara de menino
pela novidade que traz;
Com cara de velho avô
pela qualidade da paz.
Mora lá. Elegante. Solene.
Ainda que poderoso pela fartura de folhas
Todo grande, gigante, recheado de sentidos
Ainda que pareça na forma até grosso
é um poço generoso.
Parece um vigia, uma babá, um tutor.
Parece segurança, certeza, confirmação.
Valente matador de dúvidas, veste a beca da humildade
e nem se incomoda em ser só precisão.
Fica lá. Se doa para a poeira que vem tecer com o sol a teia do tempo
sobre sua firme encadernadura.
Assiste aos lapsos de memória
escora a literatura no ritual da decodificação.
Mas nessa muda eloquência, nessa silenciosa falação
me protege e me rege.
Amigo calado, consistente, combinado. (Tem sempre uma palavra pra dar)
Não me falta, não se vende...
É meu instrutor, protetor e anjo da guarda.
É nele que penso quando vejo um guarda e tenho medo...
Eu queria que a polícia daqui tivesse esse mesmo afetuoso itinerário:
Fiel companheiro do cidadão
como é meu dicionário.

O Semelhante, Elisa Lucinda -5ª edição - Rio de Janeiro: Record 2006


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