Isso que eu
vou contar já faz muito anos, é só memória...
Eu disse que o Paraíso mora numa ampola de dolantina...
“Cessa a dor!”
E ela cessa... Pena que o paraíso seja de tão curta duração. A dor se vai, sim,
mas fica de tocaia...
Me tocaiou... Foi voltando devagarzinho,
aparecendo num outro lugar: a coluna. Ela chegava e ia torcendo o corpo,
obrigando-o a assumir as posiçoess mais estranhas para livrar-se dela. Lembro-me
de uma viagem que fiz até o litoral, corpo curvado, o pé apoiado no painel de
instrumentos do carro. Chegando lá, praia, lugar de deleites e risos, a dor não
e deixou. Ela só me deixava em paz numa posição: agachado.
A dor não me deixava alternativas. Qualquer
coisa para livrar-me dela: cirurgia. Mas a cirurgia era de resultados duvidosos.
Um ortopedista conhecido, sabendo dos riscos, me disse: “Só faço cirurgia de
hérnia de disco quando o paciente ameaça cometer suicídio...”.
Pois é isso mesmo que acontece: a dor,
ultrapassado um certo limite, faz sonhar com a morte, como a única
possibilidade de libertação. Coisa estranha esta, desejar morrer por amor à
vida... Walter Rauschenbush assim colocou a questão no seu livro Orações por um mundo melhor: A norte não é
mais uma inimiga e sim um grande anjo, o único a poder abrir , para alguns de
nós, a prisão de dor e do sofrimento...”. Quando a dor é sem trégua , a
pessoa que sofre tem um único desejo: parar de sofrer. Esgotados todos os
recursos para pôr fim à dor, resta morrer.
Eu não queria morrer; queria parar de sofrer. No quarto do hospital,
torturado pela dor, aguardando cirurgia, ouvi, vindo de não sei de onde ( ou
terá sido uma alucinação minha?) um trecho de uma sonata de Beethoven. Que
combinação mais estranha! Beleza e dor... num arroubo de coragem ( ou de
loucura), cerrei os dentes e disse pra mim mesmo: “Nem toda dor do mundo será
capaz de destruir a beleza dessa sonata!”. Mas foi coisa momentânea. Meu corpo
não queria a beleza da sonata de Beethoven; ele só queria não mais sentir
dor... Se o preço de acabar com a dor fosse silenciar a sonata, meu corpo
preferiria que a beleza não existisse.
Finalmente, a cirurgia. Abençoo o meu filho
que é anestesista, embora jamais tenha sido o “meu” anestesista. É perigoso... para ele... Mergulhado no sono,
não sinto dor. No dia seguinte, o cirurgião veio me visitar e pediu-me pra
fazer um movimento-teste. Fiz. Beliscou. A dor ainda estava lá dentro. Uma
outra cirurgia seria necessária. Fiz a segunda cirurgia. A dor piorou, multiplicada
por não sei quanto. De volta para casa, só havia um recurso para não sentir mais
dor: ficar deitado sobre o gelo... Semanas... Até que pela magia dos
bioquímicos, a dor deu-se por satisfeita e se foi...
Há de se pensar no que fazer com um corpo possuído
pelo demônio da dor. Com os meus cachorros eu sei o que fazer...
(Não é espantoso que haja religiões que
creiam que Deus tenha condenado seus desafetos a uma eternidade de dor?)
(Pimentas:
para provocar um incêndio, não é preciso fogo/Rubem Alves. 1ª edição- são Paulo:
Editora Planeta 2012)
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