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O Grande Anjo, Rubem Alves




Isso que eu vou contar já faz muito anos, é só memória...
   Eu disse que o Paraíso mora  numa ampola de dolantina...
“Cessa a dor!” E ela cessa... Pena que o paraíso seja de tão curta duração. A dor se vai, sim, mas fica de tocaia...
   Me tocaiou... Foi voltando devagarzinho, aparecendo num outro lugar: a coluna. Ela chegava e ia torcendo o corpo, obrigando-o a assumir as posiçoess mais estranhas para livrar-se dela. Lembro-me de uma viagem que fiz até o litoral, corpo curvado, o pé apoiado no painel de instrumentos do carro. Chegando lá, praia, lugar de deleites e risos, a dor não e deixou. Ela só me deixava em paz numa posição: agachado.
   A dor não me deixava alternativas. Qualquer coisa para livrar-me dela: cirurgia. Mas a cirurgia era de resultados duvidosos. Um ortopedista conhecido, sabendo dos riscos, me disse: “Só faço cirurgia de hérnia de disco quando o paciente ameaça cometer suicídio...”.
  Pois é isso mesmo que acontece: a dor, ultrapassado um certo limite, faz sonhar com a morte, como a única possibilidade de libertação. Coisa estranha esta, desejar morrer por amor à vida... Walter Rauschenbush assim colocou a questão no seu livro Orações por um mundo melhor: A norte não é mais uma inimiga e sim um grande anjo, o único a poder abrir , para alguns de nós, a prisão de dor e do sofrimento...”. Quando a dor é sem trégua , a pessoa que sofre tem um único desejo: parar de sofrer. Esgotados todos os recursos para pôr fim à dor, resta morrer.
   Eu não queria morrer;  queria parar de sofrer. No quarto do hospital, torturado pela dor, aguardando cirurgia, ouvi, vindo de não sei de onde ( ou terá sido uma alucinação minha?) um trecho de uma sonata de Beethoven. Que combinação mais estranha! Beleza e dor... num arroubo de coragem ( ou de loucura), cerrei os dentes e disse pra mim mesmo: “Nem toda dor do mundo será capaz de destruir a beleza dessa sonata!”. Mas foi coisa momentânea. Meu corpo não queria  a beleza da sonata  de Beethoven; ele só queria não mais sentir dor... Se o preço de acabar com a dor fosse silenciar a sonata, meu corpo preferiria que a beleza não existisse.
   Finalmente, a cirurgia. Abençoo o meu filho que é anestesista, embora jamais tenha sido o “meu” anestesista. É  perigoso... para ele... Mergulhado no sono, não sinto dor. No dia seguinte, o cirurgião veio me visitar e pediu-me pra fazer um movimento-teste. Fiz. Beliscou. A dor ainda estava lá dentro. Uma outra cirurgia seria necessária. Fiz a segunda cirurgia. A dor piorou, multiplicada por não sei quanto. De volta para casa, só havia um recurso para não sentir mais dor: ficar deitado sobre o gelo... Semanas... Até que pela magia dos bioquímicos, a dor deu-se por satisfeita e se foi...
  Há de se pensar no que fazer com um corpo possuído pelo demônio da dor. Com os meus cachorros eu sei o que fazer...
   (Não é espantoso que haja religiões que creiam que Deus tenha condenado seus desafetos a uma eternidade de dor?)
(Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo/Rubem Alves. 1ª edição- são Paulo: Editora Planeta 2012)

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