Pular para o conteúdo principal

História bonita: Lúcia, formada pedagoga aos 74 anos

D.Lúcia Santina Dresch - imagem: Gazeta do Povo
Minhas mãos estavam trêmulas. Olhava para aquele lugar e não conseguia encontrar um canto para acalmar minha ansiedade. Estava sozinha. A mulher que me recebeu na secretaria da faculdade não imaginava que estava ali para falar de mim, do meu maior sonho. Aos 71 anos, fiz minha inscrição para o vestibular de pedagogia. E passei.

Nasci em 1931, em Arroio do Meio, interior do Rio Grande do Sul. Sou a filha do meio de cinco mulheres de uma família simples. Logo cedo pedia para estudar, como alguns vizinhos faziam. Não existia ensino público. Era preciso pagar. Minha mãe não via valor nos estudos, só na enxada. Meu pai queria realizar nossos sonhos. Com o apoio dele, aos 8 anos entrei na escola.

Para não me atrasar, acordava quando nem havia sinal de sol. Trocava de roupa na penumbra. O trajeto para a escola resumia-se a uma trilha, no meio do mato. Quando chovia, ia a pé com outras crianças. Quando não, a cavalo. Não perdia uma aula. Queria conhecer o mundo além da trilha da minha casa até a escola. Na volta para casa, almoçava e ia ajudar meu pai na lavoura. Só conseguia voltar aos livros à noite. Meu pai acendia o forno a lenha para eu ler.

Na minha formatura da 4ª série, fui a primeira aluna da sala. Ganhei de presente um livro de histórias e uma caixa de bombons. Nunca tinha comido chocolate, nem provado o sabor de uma conquista. Uma das professoras notou meu interesse e se ofereceu para ajudar a arcar com meus estudos. Eu teria de morar na casa dela, porque a escola era longe do nosso sítio. Fiquei fora de casa por uma semana. Não aguentei de saudades.

Logo depois, mudamos de cidade, e não existia um centro de ensino próximo. Naturalmente, a vida me levou de volta para a roça. Casei aos 16 anos. Tive oito filhos. À procura de terras férteis, fomos para Quatro Pontes, no Paraná, onde moro até hoje. Criei minha família com o trabalho na lavoura. Quis que todos os meus filhos estudassem. Nunca abandonei a vontade de voltar a frequentar uma sala de aula.

Aos 69 anos, soube de uma campanha da prefeitura para que os moradores voltassem a estudar. Meus filhos eram independentes, e eu viúva. Não tinha compromisso com mais ninguém. Decidi encarar o desafio. Peguei carona com um vizinho e, sem dar satisfação a nenhum filho, fiz a inscrição no supletivo para completar o ensino fundamental e o médio. Foram dois anos.

Ali, descobri que me faltava uma faculdade. Alguns filhos, percebendo minha motivação, propuseram pagar para mim. Prestei vestibular para pedagogia aos 71 anos. Passei na primeira chamada. Fui muito ajudada durante todo o curso pelos meus colegas de sala, que tinham idade para ser meus netos. Até lugar no ônibus da volta eles reservavam para mim. Nos três anos do estudo, faltei dois dias porque o ônibus passou mais cedo. Na formatura, meus filhos aplaudiram de pé minha conquista. Lancei um livro com minhas memórias para agradecer a todos que me apoiaram. Com esse curso, vou ajudar meus 17 netos e 12 bisnetos a encontrar prazer nos livros. Ajudo os que estão por perto em casa a estudar. Uso Skype e Facebook para manter contato com os que moram longe."


(Revista Época)

Sobre o livro: Memórias e Tajetória de Uma Vida, clique aqui.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Aprenda a Chamar a Polícia, Luis Fernando Veríssimo

          Eu tenho o sono muito leve, e numa noite dessas notei que havia alguém andando sorrateiramente no quintal de casa. Levantei em silêncio e fiquei acompanhando os leves ruídos que vinham lá de fora, até ver uma silhueta passando pela janela do banheiro.                   Como minha casa era muito segura, com  grades nas janelas e trancas internas nas portas, não fiquei muito preocupado, mas era claro que eu não ia deixar um ladrão ali,espiando tranquilamente. Liguei baixinho para a polícia, informei a situação e o meu endereço. Perguntaram- me se o ladrão estava armado ou se já estava no interior da casa.            Esclareci que não e disseram-me que não havia nenhuma viatura por perto para ajudar, mas que iriam mandar alguém assim que fosse possível. Um minuto depois liguei de novo e disse com a voz calma: - Oi, eu liguei há pouco porque tinha alguém no meu quintal. Não precisa mais ter pressa. Eu já matei o ladrão com um tiro da escopeta calibre 12, que tenho guard