"Sempre tenho confiança de que não serei
maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não
me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz
baixa: 'Eu sou lá de Cachoeiro...' (Rubem Braga)
Um dos melhores e, sem dúvida, um do mais produtivos cronistas do país,o grande escritor Rubem Braga faria 100 anos hoje.
O Conde E O Passarinho
Um dos melhores e, sem dúvida, um do mais produtivos cronistas do país,o grande escritor Rubem Braga faria 100 anos hoje.
O Conde E O Passarinho
Acontece que o Conde Matarazzo estava
passeando pelo parque. O Conde Matarazzo é um Conde muito velho, que tem
muitas fábricas. Tem também muitas honras. Uma delas consiste em uma
preciosa medalhinha de ouro que o Conde exibia à lapela, amarrada a uma
fitinha. Era uma condecoração (sem trocadilho).
Ora, aconteceu também um passarinho. No
parque havia um passarinho. E esses dois personagens – o Conde e o
passarinho – foram os únicos da singular história narrada pelo Diário de São Paulo.
Devo confessar preliminarmente que, entre
um Conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho.
Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência. Afinal de
contas, um passarinho canta e voa. O Conde não sabe gorjear nem voar. O
Conde gorjeia com apitos de usinas, barulheiras enormes, de fábricas
espalhadas pelo Brasil, vozes dos operários, dos teares, das máquinas de
aço e de carne que trabalham para o Conde. O Conde gorjeia com o
dinheiro que entra e sai de seus cofres, o Conde é um industrial, e o
Conde é Conde porque é industrial. O passarinho não é industrial, não é
Conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas
um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho.
Eu quisera ser um passarinho. Não, um passarinho, não. Uma ave maior, mais triste.
Eu quisera ser um urubu.
Entretanto, eu não quisera ser Conde. A
minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser Conde.
Não amo os Condes. Também não amo os industriais. Que eu amo? Pierina e
pouco mais. Pierina e a vida, duas coisas que se confundem hoje, e
amanhã mais se confundirão na morte.
Entendo por vida o fato de um homem viver
fumando nos três primeiros bancos e falando ao motorneiro. Ainda ontem
ou anteontem assim escrevi. O essencial é falar ao motorneiro. O povo
deve falar ao motorneiro. Se o motorneiro se fizer de surdo, o povo deve
puxar a aba do paletó do motorneiro. Em geral, nessas circunstâncias, o
motorneiro dá um coice. Então o povo deve agarrar o motorneiro,
apoderar-se da manivela, colocar o bonde a nove pontos, cortar o
motorneiro em pedacinhos e comê-lo com farofa.
Quando eu era calouro de Direito,
aconteceu que uma turma de calouros assaltou um bonde. Foi um assalto
imortal. Marcamos no relógio quanto nos deu na cabeça, e declaramos que a
passagem era grátis. O motorneiro e o condutor perderam, rápida e
violentamente, o exercício de suas funções. Perderam também os bonés. Os
bonés eram os símbolos do poder.
Desde aquele momento perdi o respeito por
todos os motorneiros e condutores. Aquilo foi apenas uma boa molecagem.
Paciência. A vida também é uma imensa molecagem. Molecagem podre.
Quando poderás ser um urubu, meu velho Rubem?
Mas voltemos ao Conde e ao passarinho.
Ora, o Conde estava passeando e veio o passarinho. O Conde desejou ser
que nem o seu patrício, o outro Francisco, o Francisco da Umbria, para
conversar com o passarinho. Mas não era aquele, o São Francisco de
Assis, era apenas o Conde Francisco Matarazzo. Porém, ficou encantado ao
reparar que o passarinho voava para ele. O Conde ergueu as mãos, feito
uma criança, feito um santo. Mas não eram mãos de criança nem de santo,
eram mãos de Conde industrial. O passarinho desviou e se dirigiu firme
para o peito do Conde. Ia bicar seu coração? Não, ele não era um bicho
grande de bico forte, não era, por exemplo, um urubu, era apenas um
passarinho. Bicou a fitinha, puxou, saiu voando com a fitinha e com a
medalha.
O Conde ficou muito aborrecido, achou muita graça. Ora essa! Que passarinho mais esquisito!
Isso foi o que o Diário de São Paulo contou.
O passarinho, a esta hora assim, está voando, com a medalhinha no bico.
Em que peito a colocareis, irmão passarinho? Voai, voai, voai por entre
as chaminés do Conde, varando as fábricas do Conde, sobre as máquinas
de carne que trabalham para o Conde, voai, voai, voai, voai, passarinho,
voai.
(Em: O Conde e o Passarinho, 1936) - Leia sobre Rubem Braga
Sobre a vida – e principalmente as circunstâncias que cercaram a a morte de Rubem Braga – vale a pena ler este excelente texto do mauro santayana, do Jornal do Brasil:
ResponderExcluirhttp://www.maurosantayana.com/2013/01/rubem-e-o-poder.html
Caro anônimo,agradeço a sugestão e a visita. Abraço
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